O que Deus ajuntou … (b)

Cap. 1 — Divórcio e novo casamento: introdução

John M Riddle

Antigamente, quando o divórcio e um novo casamento eram relativamente raros, este assunto era quase que só um assunto acadêmico. Infelizmente, este não é mais o caso hoje em dia. As últimas estatísticas sugerem que 50% dos casamentos terminam num tribunal de divórcio. Enquanto esta porcentagem não se aplica aos crentes, há também, lamentavelmente, um aumento na incidência de casamentos desfeitos entre o povo do Senhor. Por isso é importante enfatizar, não apenas a gravidade do divórcio, mas também a seriedade do casamento.



J. C. Ryle, escrevendo em 1857, merece uma citação:
É um fato lamentável … que poucos são os casais jovens que pensam em convidar Cristo ao seu casamento! É um fato triste que casamentos infelizes são uma das grandes causas de tanta angustia e sofrimento que há no mundo. Pessoas descobrem, tarde demais, que cometeram um grande erro, e continuam em amargura pelo resto dos seus dias. Felizes são aqueles que, em relação ao casamento, observam três regras. A primeira é casar somente no Senhor, e somente depois de orar pela aprovação e bênção de Deus. A segunda é não esperar demais dos seus cônjuges e lembrar que, afinal, o casamento é a união de dois pecadores, e não de dois anjos! A terceira regra é esforçar-se ao máximo para ajudar na santificação um do outro. Quanto mais santos forem os casados, tanto mais felizes serão, também.
Na consideração deste assunto sensível, temos de fazer três observações preliminares e necessárias:
  • Temos de nos esforçar para saber o que as Escrituras realmente dizem. Somente assim estaremos numa posição para decidir como aplicar as Escrituras. Assim,
  • Não seremos guiados pelas nossas emoções quando tratarmos deste assunto delicado. Sentimentos frequentemente dominam nestes casos e, se não tivermos cuidado, podemos não atentar para as Escrituras, ou forçá-las a dizer o que nós achamos que devem dizer.
  • Devemos também nos esforçar para demonstrar ternura e compaixão ao tratarmos com pessoas atingidas por este grave problema. Muitas situações são complicadas e aparentemente sem solução. Pessoas frequentemente enfrentam situações impossíveis, e mesmo que a culpa seja principalmente delas, isto não significa que devemos tratá-las com frieza ou indiferença. Devemos mostrar, pelo menos, uma atitude de compaixão. O pecado tem causado grande estrago em todas as esferas da vida, e o divórcio e o novo casamento têm criado uma grande colheita de problemas e dificuldades.
Embora o ensino do Senhor sobre este assunto seja de grande importância, não podemos ignorar as circunstâncias em que o ensino foi dado, e também os princípios sobre os quais Ele respondeu às perguntas dos fariseus. Note portanto:

A tentativa de desacreditar o Senhor (Mc 10:1-2)

“E, aproximando-se dele os fariseus, perguntaram-lhe, tentando-o: É lícito ao homem repudiar sua mulher?”

As palavras “tentando-o” deixam bem claro que esta pergunta era uma “pergunta capciosa”. Se o Senhor respondesse: “Não, não é lícito ao homem repudiar sua mulher”, então os fariseus alegremente teriam citado Dt 24:1: “Quando um homem tomar uma mulher, e se casar com ela, então será que, se não achar graça em seus olhos, por nela achar coisa indecente, far-lhe-á uma carta de repúdio, e lha dará na sua mão, e a despedirá da sua casa”.

Por outro lado, se o Senhor respondesse: “Sim, é lícito ao homem repudiar sua mulher”, então os fariseus, com a mesma alegria, teriam citado Gn 2:24: “Portanto deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne”.

Aparentemente não havia saída para o Senhor, e seus inimigos O haviam colocado numa situação impossível. Contudo, aquela tentativa para superá-lO falhou totalmente. Sua resposta: “Pela dureza dos vossos corações vos deixou ele escrito esse mandamento; porém desde o princípio da criação, Deus os fez macho e fêmea …”, satisfazia as duas passagens das Escrituras.

Notamos aqui como mais tarde (veja Mc 12:13-17), ainda destemidos, os fariseus e os herodianos novamente tentaram apanhar o Senhor Jesus, e novamente foram silenciados. O Senhor mostrou, nas duas ocasiões, que Ele era o Mestre.

Agora, vamos notar os princípios sobre os quais o Senhor respondeu esta pergunta dos fariseus sobre o divórcio.

A resposta dada pelo Senhor (Mc 10:1-12)

O Salvador silenciou Seus inimigos ao explicar as duas passagens das Escrituras. Era o propósito dos fariseus usar uma passagem contra a outra. Eles fariam qualquer coisa para alcançar o seu propósito, mas a sua tentativa de derrotar o Senhor Jesus caiu por terra, quando as Escrituras pertinentes foram cuidadosamente explicadas. Isto é muito importante. Quando duas passagens parecem ser contraditórias, ou quando outras pessoas dizem que há contradição, um estudo cuidadoso resolverá o problema. Temos de prestar atenção ao contexto em que o ensino foi dado, e à época em que foi dado. Ao tratarmos de qualquer assunto bíblico, todas as passagens precisam ser consideradas, e a interpretação tem que satisfazer a todas elas.

Isto também quer dizer que toda a Escritura tem de ser interpretada em relação aos propósitos iniciais e imutáveis de Deus. Isto se tornará bem claro agora, enquanto consideramos o ensino do Senhor sobre o divórcio e novo casamento em Mc 10:3-12.

A instituição do casamento por Deus (Mc 10:6-9)

Para o propósito deste estudo, e somente por causa da ordem cronológica, vamos considerar os vs. 6-9 antes dos vs. 2-5. Devemos notar, em primeiro lugar, que o Senhor Jesus respondeu a pergunta dos fariseus ao citar o propósito inicial e permanente de Deus no casamento: “Porém, desde o princípio da criação, Deus os fez macho e fêmea. Por isto deixará o homem a seu pai e a sua mãe, e unir-se-á à sua mulher; e serão os dois, uma só carne. Portanto o que Deus ajuntou não o separe o homem” (vs. 6-9). Note como o Senhor cita Gn 1:27 e também 2:24. Isto, em si, contradiz qualquer sugestão de evolução. O Senhor confirma a criação de Adão e Eva, que não é surpresa quando lembramos que Ele é o Criador de tudo: “Todas as coisas foram feitas por Ele; e sem Ele nada do que foi feito se fez” (Jo 1:3). Veja também Mt 19:8: “Moisés, por causa da dureza dos vossos corações vos permitiu repudiar vossas mulheres, mas no princípio não foi assim”.

O propósito do casamento

A lei de primeira menção é muito importante na interpretação das Escrituras, e nas primeiras três passagens em que encontramos a palavra “casamento” na Bíblia

O autor refere-se ao uso da palavra marriage e suas derivadas na Bíblia em inglês, versão King James, também conhecida como Authorised Version. (N. T.)
, três palavras hebraicas diferentes são usadas:
  • “Então saiu Ló, e falou a seus genros, aos que haviam de tomar as suas filhas (“que estavam para casar com suas filhas”, ARA — Gn 19:14). Neste caso, a palavra “tomar” na linguagem original significa “obter ou receber”.
  • “E aparentai-vos conosco” (Gn 34:9). Aqui a palavra usada

    No inglês, “fazei casamentos conosco”. (N. T.)
    significa “dar”.
  • “Se lhe tomar outra, não diminuirá o mantimento desta, nem o seu vestido, nem a sua obrigação marital” (Êx 21:10). Neste caso a palavra “marital” significa “morar juntos”.
Estas referências podem ser resumidas da seguinte maneira: “O casamento foi designado para permitir que duas pessoas do sexo oposto vivessem juntas em harmonia. O casal que se casa é dado um ao outro pelos seus pais. Não somente o casal recebe muito mais do que perde, mas as duas famílias de onde vieram também recebem. O casamento une as duas pessoas e as duas famílias numa afinidade que de outro modo não existiria.”

O casamento que Deus instituiu incluiu um homem e uma mulher. Deus criou somente Adão e Eva no jardim. Ele podia ter feito duas mulheres, ou mais! A queda não mudou nada. Havia quatro casais na arca, em contraste com a bigamia e poligamia que já existia naquele tempo, antes do Dilúvio (veja, por exemplo, Gn 4:19, 23).

Muitos problemas desagradáveis surgiram por causa da poligamia. Basta olhar para os problemas nas famílias de Abraão, Jacó e Davi. O rei de Israel não deveria multiplicar mulheres para si (Dt 17:17).

O NT embeleza e enfatiza este princípio de Deus para o casamento: “Cada um tenha a sua própria mulher, e cada uma tenha o seu próprio marido” (I Co 7:2).

Quando ocorre o casamento?

É importante entender quando ocorre o casamento. Com Adão e Eva isto aconteceu logo que Deus apresentou Eva a Adão. “E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne” (Gn 2:23). Adão foi então chamado o “seu marido” e Eva a “sua mulher” (Gn 3:6, 17, 20). Notamos que são chamados “marido” e “mulher”, mesmo embora o casamento ainda não fora consumado. É depois disto, em Gn 4:1, que lemos: “E conheceu Adão a Eva, sua mulher, e ela concebeu”. Portanto, o argumento de que um casamento somente existe aos olhos de Deus quando é consumado é totalmente falso. Notemos também a ordem, inspirada pelo Espírito Santo, em Rt 4:13: “Assim tomou Boaz a Rute, e ela lhe foi por mulher; e ele a possuiu, e o Senhor lhe fez conceber, e deu à luz um filho”.

O casamento ocorre quando a noiva e o noivo aceitam um ao outro em matrimônio. A maneira exata pode variar conforme a cultura do lugar, mas o casamento começa neste ponto de tempo. Na Inglaterra, por exemplo, depois de aceitarem um ao outro, o juiz ou ministro diz: “Eu agora declaro que sois doravante marido e mulher …” É num momento posterior que o homem se “apega” a sua mulher. É bom notar a diferença importante entre “um corpo” e “uma só carne” (I Co 6:16). A primeira frase se refere ao relacionamento com uma prostituta; é físico e nada mais. A segunda se refere ao relacionamento entre marido e mulher; é completo, física e emocionalmente.

A estabilidade do casamento

Deus estabeleceu, desde o princípio, a indissolubilidade do casamento. Com a palavra falada Ele povoou as águas com peixes, o firmamento com aves e a Terra com os seres viventes, segundo a sua espécie. Mas o homem foi uma criação especial (veja Gn 2:7). A mulher também foi especial na sua criação (veja Gn 2:21-22). Por que Deus fez a mulher de uma maneira diferente? A resposta, obviamente, é para que pudesse haver, no casamento, um vínculo indissolúvel, o que não ocorre e não pode ocorrer com qualquer outra parte da Criação de Deus: “eles serão uma só carne”.

Isto indica que, desde o princípio, o casamento foi indissolúvel. O Senhor Jesus enfatizou isto quando advertiu: “O que Deus ajuntou não o separe o homem” (Mc 10:9). Ele também acrescentou: “Qualquer que deixar a sua mulher e casar com outra, adultera contra ela“ (Mc 10:11). Paulo diz pelo Espírito: “A mulher casada está ligada pela lei todo o tempo que o seu marido vive; mas, se falecer o seu marido fica livre para casar com quem quiser, contanto que seja no Senhor” (I Co 7:39). Estas Escrituras, por si, devem acabar, para sempre, com o pensamento de que podemos desfazer o jugo divino do casamento. Nunca lemos de divórcio no livro de Gênesis; ele nem é considerado; e nem deveria ser considerado hoje. Isto está de acordo com o ensino do NT. A epístola aos Romanos afirma: “Porque a mulher que está sujeita ao marido, enquanto ele viver, está-lhe ligada pela lei, mas, morto o marido, está livre da lei do marido. De sorte que, vivendo o marido, será chamada adúltera se for de outro marido” (Rm 7:2-3). Isto precisa ser sempre repetido hoje. Deus faz o casamento indissolúvel, e somente Ele pode romper esta união, pela morte. Isto é verdade de todos os casamentos, quer sejam de salvos ou incrédulos, quer realizados antes ou depois da salvação.

Temos de observar que as palavras “não o separe o homem” são incondicionais. “Fica em aberto se a referência é a uma das duas pessoas envolvidas, ou a alguém de fora que quer destruir o casamento ou a um ‘oficial’ que pronuncia um decreto de divórcio” (St John). Devemos notar também que isso não ensina que existe a possibilidade do laço matrimonial ser desfeito, mas sim que a vida harmoniosa de marido e mulher, juntos, pode ser prejudicada.

O fato de Paulo citar Gênesis 2, ao falar de “Cristo e a igreja” (Ef 5:31-32) indica o propósito permanente e indissolúvel do casamento. Este padrão nunca foi abolido. O casamento é considerado como uma solene aliança perante Deus. Vemos isto em Pv 2:17: “A mulher estranha … que deixa o guia da sua mocidade e se esquece da aliança do seu Deus”, e também em Ml 2:14: “Sendo ela a tua companheira, e a mulher da tua aliança”. Deus tem revelado a Sua mente sobre o assunto do divórcio de uma maneira muito clara. “Porque o Senhor Deus de Israel diz que odeia o repúdio” (Ml 2:16). O desejo de todos os salvos deve ser cumprir a vontade revelada de Deus em relação ao casamento e, portanto, o divórcio nunca deve ser contemplado.

Temos de enfatizar novamente o princípio mais importante: os propósitos iniciais de Deus são imutáveis, independentemente do que acontecer posteriormente. Para resolver qualquer questão, portanto, temos sempre de voltar para o princípio. Repare como Paulo aplicou este princípio em Gl 1:8-9. Ele conclui que a questão da justificação pela fé, e não pela lei, é decidida exatamente neste princípio. Veja Romanos 4.

Também é importante destacar aqui que embora falamos de “casamento cristão”, de fato não existe tal coisa. Casamento é ligado com a Criação e não com o cristianismo, e temos sempre que lembrar disto ao tratar de qualquer caso de divórcio.

O impacto do adultério no casamento

Será que o adultério desfaz o laço matrimonial? Frequentemente é dito que “aquilo que faz o casamento é aquilo que o desfaz”. Contudo, temos notado que não é a consumação que estabelece o casamento. Devemos observar que o Senhor mesmo ensinou que “qualquer que deixar a sua mulher e casar com outra, adultera contra ela” (Mc 10:11). Notemos esta frase “contra ela”. Não importa o processo legal que passou, perante Deus a esposa inicial ainda é sua esposa. Vemos isto quando João Batista repreendeu Herodes porque “casou” com Herodias, “mulher de seu irmão, Filipe” (Mt 14:3). Mesmo que ocorrera adultério, e ela estava com outro homem, Deus ainda a via como mulher de Filipe. Já notamos o colapso da ordem matrimonial no caso de Abraão e Jacó, mas apesar disto, nenhum casamento verdadeiro foi desfeito. Sarai era a primeira mulher de Abraão, e não há nenhuma sugestão de divórcio apesar do seu relacionamento com Agar. Isto continua através da história do VT. Mesmo quando Davi cometeu adultério com Bate-seba, ela continuou casada com Urias até que este morreu na trama assassina de Davi. Todos os casamentos foram reconhecidos por Deus até que Ele removeu um dos parceiros pela morte. Notamos também que em Números 5, que trata da suspeita de adultério, são sempre chamados “marido” e “mulher” em todo o capítulo. Mesmo quando o adultério foi provado, ela continuou sendo a “mulher” daquele homem.

A Escritura deixa bem claro: “A mulher casada está ligada pela lei todo o tempo que o seu marido vive; mas, se falecer o seu marido, fica livre para casar com quem quiser, contanto que seja no Senhor” (I Co 7:39).

A introdução do divórcio por Moisés (Mc 10:2-5)

Agora chegamos à única situação em que o divórcio era permitido no VT. As circunstâncias devem ser examinadas cuidadosamente; e depois de uma consideração cuidadosa, o escritor chegou à conclusão de que esta não é a “cláusula de exceção” citada pelo Senhor Jesus Cristo (Mt 5:32).

Apesar do fato do Senhor Jesus, ao responder à pergunta dos fariseus sobre o divórcio, citar o propósito original e imutável de Deus para o casamento, Ele também perguntou, antes disto: “Que vos mandou Moisés?” Os fariseus responderam: “Moisés permitiu escrever carta de divórcio, e repudiar”. O Senhor Jesus então explica esta concessão de Moisés dizendo: “Pela dureza dos vossos corações vos deixou ele escrito esse mandamento” (vs. 3-5). A palavra “dureza” indica um caráter duro e até desumano. A referência aqui é a Dt 24:1-2: “Quando um homem tomar uma mulher, e se casar com ela, então será que, se não achar graça em seus olhos, por nela achar coisa indecente, far-lhe-á uma carta de repúdio, e lha dará na sua mão, e a despedirá da sua casa. Se ela, pois, saindo da sua casa, for, e se casar com outro homem …” Aqui a mui respeitada tradução de J. N. Darby diz: “E ela sairá da sua casa e irá embora, e pode se tornar a mulher de outro homem”. (Mais instruções são dadas nos vs. 3-4; se a mulher fosse subsequentemente divorciada ou se tornasse viúva, seu primeiro marido não poderia se casar de novo com ela.)

Temos de notar que esta é a única base para o divórcio no VT. Mas, qual era esta base? Obviamente não era adultério, pois a penalidade por adultério era a morte (Dt 22:22). Também não era infidelidade durante o tempo de noivado, antes do casamento, pois conforme as circunstâncias, a penalidade desta infidelidade era também a morte (Dt 22:23-27). Se um homem acusasse a sua mulher de infidelidade durante o noivado, e não fosse provado: “lhe será por mulher, em todos os seus dias não a poderá despedir” (Dt 22:19). Mas, se fosse provada a infidelidade, então ela seria apedrejada (Dt 22:20-22).

Assim, esta pergunta tem de ser repetida: “Qual era a base para o permitido divórcio?” Notamos a frase já citada de Dt 24:1: “por nela achar coisa indecente”. O que era esta “coisa indecente”? Alguns têm interpretado isto como fornicação durante o período do noivado, e que foi descoberto somente depois do casamento. Mas, se fosse assim, por que não dizer, como diz em Dt 22:14, 17: “Não a achei virgem”? Aqui, em Deuteronômio 24, parece que a mulher não pecou, mas que o marido simplesmente descobriu nela alguma coisa da qual não gostou

Pode nos ajudar a entender que a frase “coisa indecente” não significa imoralidade, se a compararmos com Dt 23:13-14, onde achamos a mesma palavra traduzida “coisa feia” em relação às necessidades fisiológicas normais. (N. T.)
e considerou “indecente” ou “feia”. Não é questão de imoralidade, e sugerimos que o que a lei de Moisés está dizendo é que se o homem descobrisse que por alguma razão física, cerimonial ou outra, não era desejável para ele consumar o casamento, e assim produzir filhos, ele tinha que lhe dar uma carta de divórcio, para manter a dignidade da mulher, por causa do seu “coração duro”.

No VT o divórcio, embora não previsto no ideal divino para o casamento, foi permitido para salvar uma mulher infeliz de um casamento sem amor. Esta é a explicação dada pelo Senhor Jesus: “por causa da dureza dos vossos corações ele vos deixou escrito este mandamento” (Mc 10:3-5). Como outro escreveu: “Não era a solução ideal, mas era a melhor que Israel tinha condições para receber”. É suficiente dizer que o filho de Deus vive, não pela melhor solução para o homem não regenerado, mas pelo alto padrão ensinado em Gn 2:24.

Mas mesmo esta “permissão” evidentemente estava sendo abusada, e os homens estavam divorciando suas esposas por qualquer razão, e por isso temos a pergunta de Mt 19:3: “É lícito para o homem repudiar a sua mulher por qualquer motivo?” A escola de Shamai (os que seguiam os ensinos do Rabi Shamai) permitia o divórcio somente no caso de adultério. A escola de Hilel (os que seguiam os ensinos do Rabi Hilel, que tinha opiniões mais liberais) permitia o divórcio por razões surpreendentes. Um comentário antigo sobre Mt 5:31 diz: “A escola de Hilel diz que se uma mulher prepara a comida do marido com muito sal, ou a queima, ela deve ser divorciada”. Edersheim (respeitado comentarista judaico) diz que esta mesma escola permitia o divórcio quando o homem achava outra mulher mais atraente do que a sua esposa. Outros permitiam ao homem divorciar a sua mulher se ela tecesse na rua, ou falasse dos seus pais de maneira desrespeitosa na sua presença.

O ensino de Cristo sobre divórcio

Em vista do abuso de Dt 24:1-2, o Senhor Jesus ajustou a provisão (ou concessão) de Moisés ao reafirmar o ideal divino e as consequências da sua transgressão: “Qualquer que deixar sua mulher e casar com outra, adultera contra ela. E, se a mulher deixar a seu marido, e casar com outro, adultera” (Mc 10:11-12). Compare com a referência de Lucas: “Qualquer que deixa sua mulher, e casa com outra, adultera; e aquele que casa com a repudiada pelo marido adultera também” (Lc 16:18). Marcos e Lucas não admitem qualquer exceção.

Note que em Marcos 10 o homem, divorciando sua mulher e casando de novo, comete adultério “contra ela”. Portanto, o primeiro casamento continua em vigor. Também a mulher que, divorciando seu marido, casa de novo, comete adultério; portanto, o primeiro casamento está ainda em vigor. Em Lucas 16, não somente o homem que divorcia sua mulher comete adultério ao casar de novo, mas o homem que casa com a mulher divorciada também comete adultério.

Em Mateus caps. 5 e 19 somente há menção do homem divorciando sua mulher, mas em Marcos 10 é diferente. O homem que divorcia sua mulher e a mulher que divorcia seu marido são ambos mencionados. Em Marcos 10, o Senhor leva o assunto totalmente fora do contexto judaico, como foi em Mateus. Sabemos disso pela simples razão que sob a lei dos judeus, o marido podia divorciar sua mulher, mas a mulher não podia divorciar seu marido. Marcos 10 não tem um contexto judaico e portanto não tem uma cláusula de exceção.

O Senhor Jesus está claramente substituindo a lei de Moisés. Devemos reconhecer que Ele tinha autoridade para fazer isto. Note como é semelhante ao Seu ensino em Mt 19:8-9: “Disse-lhes ele: Moisés por causa da dureza dos vossos corações vos permitiu repudiar vossas mulheres, mas ao princípio não foi assim. Eu vos digo …” Achamos um ensino paralelo em Mt 5:31-32: “Também foi dito, qualquer que deixar sua mulher, dê-lhe carta de desquite. Eu, porém, vos digo …” A autoridade do Senhor é vista claramente nas palavras: “Eu, porém, vos digo”. É notável que no último livro do VT há muitas ocorrências da frase “Assim diz o Senhor”; entretanto no primeiro livro do NT ela não ocorre, mas é substituída por “Eu vos digo”. O Senhor que fala do Céu, em Malaquias, está falando da Terra, em Mateus.

Paulo esclarece bem a posição: “A lei tem domínio sobre o homem por todo tempo que vive. Porque a mulher que está sujeita ao marido, enquanto ele viver, está-lhe ligada pela lei; mas, morto o marido, está livre da lei do marido. De sorte que, vivendo o marido será chamada adúltera, se for doutro marido; mas, morto o marido, livre está da lei, e assim não será adúltera, se for doutro marido” (Rm 7:1-3).

Não podemos deixar o assunto, baseado em Mc 10:1-12, sem considerar as outras passagens que têm ligação com o mesmo assunto.

Mateus 5:32 e 19:9

Estes dois versículos têm o que é frequentemente chamado de “a cláusula de exceção”. “Também foi dito: Qualquer que deixar sua mulher, dê-lhe carta de desquite. Eu, porém, vos digo que qualquer que repudiar sua mulher, a não ser por causa de prostituição (ou fornicação — pornéia) faz que ela cometa adultério (moicheia), e qualquer que casar com a repudiada comete adultério (moicheia)” (Mt 5:31-32). “Eu vos digo, porém que qualquer que repudiar sua mulher, não sendo por causa de fornicação (pornéia) e casar com outra, comete adultério (moicheia) e o que casar com a repudiada também comete adultério (moicheia)” (Mt 19:9). Uma coisa se torna perfeitamente clara — estes versículos permitem o divórcio somente num caso: a imoralidade. Não crueldade mental, incompatibilidade, deserção, colapso irrecuperável, ou qualquer outra razão. A única base é a imoralidade. Se o motivo não for imoralidade (e a palavra exata usada é pornéia: “fornicação” ou “prostituição”) então o marido que divorcia sua mulher e casa de novo se torna culpado de adultério (Mt 19:9). Também a mulher que foi divorciada e casar novamente, comete adultério (Mt 5:32); e a pessoa que casa com a mulher divorciada, também comete adultério (Mt 5:32 e 19:9).

Contudo, a imoralidade tem de ser qualificada. A palavra exata usada pelo Senhor Jesus nestes versículos é “fornicação” ou “prostituição” (pornéia) e é aqui que entram as diferenças nas interpretações de homens estudiosos. Há duas interpretações principais:
  • Que “fornicação” (pornéia) inclui todo tipo de imoralidade. Isto é, imoralidade antes do casamento ou depois do casamento, e inclui, portanto, o adultério. Infelizmente W. E. Vine, no seu excelente “Expository Dictionary of New Testament Words”, diz

    A versão Atualizada também mostra esta interpretação traduzindo pornéia por “relações sexuais ilícitas”. (N. T.)
    que em Mt 5:32 e 19:9, “a palavra indica e inclui adultério”. Contudo, se o Senhor Jesus queria indicar que adultério é a única base para o divórcio, então por que Ele não disse isso? Em qualquer caso, se aceitarmos que fornicação e adultério são sinônimos, então tanto Mt 5:19 como 19:9 contém uma situação absurda. A mulher é repudiada por causa de adultério e isto faz com que ela, novamente, cometa adultério!
  • Que é necessário distinguir entre “fornicação” e “adultério”. Isto é, “fornicação” (pornéia) significa apenas imoralidade antes do casamento. O fato de somente Mateus, que escreveu aos judeus, incluir a “cláusula de exceção”, apoia o argumento de que o homem somente podia divorciar a sua mulher se houvesse evidência de imoralidade antes do casamento. Sob as leis judaicas de noivado, a moça “desposada” era considerada como mulher do homem, embora na realidade não fossem ainda casados. Vemos isso claramente em Dt 22:23-24 (“Quando houver moça virgem, desposada … a mulher do seu próximo”). E também em Mt 1:18-20, onde José é chamado “seu marido”, e Maria é chamada “tua mulher”, mesmo “antes de se ajuntarem”. Portanto, existe um contexto especificamente judaico em Mateus 5 e 19, que não é aplicável a Marcos e Lucas, onde não existe a cláusula de exceção.
Dando apoio adicional a esta interpretação, observamos que onde a palavra “fornicação” (pornéia) é usada sozinha, ela se refere à imoralidade no sentido geral, mas onde é usada com a palavra “adultério” se refere especificamente à imoralidade antes do casamento, e não depois.

A palavra “fornicação” usada sozinha

Às vezes, escrevendo a gentios, a palavra fornicação é usada para descrever a imoralidade de todo tipo, antes e depois do casamento. Temos um exemplo disto em I Co 5:9: “Já … tenho escrito, que não vos associeis com os que se prostituem” (pornéia). Também em I Co 6:18: “Fugi da prostituição” (pornéia). Nestes casos não podemos limitar a palavra fornicação à imoralidade antes do casamento, pois isto daria a entender que as outras formas de imoralidade eram permissíveis. Os coríntios teriam entendido bem este significado gentio da palavra, dando–lhe a aplicação geral.

“Fornicação” usada no mesmo contexto que “adultério”

Em Mt 5:32 e 19:9, fica claro que o Senhor não usou palavras diferentes só por diversidade. Obviamente, há uma diferença de significado entre as duas: “Eu porém vos digo que qualquer que repudiar sua mulher, a não ser por prostituição (pornéia), faz que ela cometa adultério, e qualquer que casa com a repudiada comete adultério” (Mt 5:32). “Eu vos digo, porém, que qualquer que repudiar sua mulher, não sendo por causa de fornicação (pornéia), e casar com outra, comete adultério; e o que casar com a repudiada também comete adultério” (Mt 19:9).

Além desses, temos que acrescentar outros versículos onde as duas palavras são usadas juntas desta maneira: “Não vos enganeis; nem fornicários, … nem os adúlteros … herdarão o reino de Deus” (I Co 6:10, VB). “Seja honrado o matrimônio por todos, e seja o leito sem mácula; pois aos fornicários e adúlteros, Deus os julgará” (Hb 13:4, VB). “Pois do coração procedem maus pensamentos, homicídios, adultérios, fornicações …” (Mt 15:19, VB). “E os escribas e fariseus trouxeram-lhe uma mulher apanhada em adultério; e pondo-a no meio, disseram-lhe: Mestre, esta mulher foi apanhada, no próprio ato, adulterando … Disseram-lhe, pois, nós não somos nascidos de prostituição (pornéia)” Jo 8:3-4, 41. Os judeus queriam com isso dizer que o Senhor fora concebido em fornicação, porque foi concebido antes do casamento dos Seus “pais”. Notando como os judeus usaram as duas palavras “adultério” e “fornicação” (ou “prostituição”) aqui em João 8, aprendemos que eles sabiam a diferença entre estas coisas. O significado da palavra fornicação também é muito claro em I Co 7:2: “Mas, por causa das fornicações, cada um tenha a sua mulher e cada uma o seu marido” (VB).

I Coríntios 7

Às vezes, alguns versículos deste capítulo são citados em favor do divórcio. Por exemplo, vs. 12-15: “Se algum irmão tem mulher descrente, e ela consente em habitar com ele, não a deixe. E se alguma mulher tem marido descrente, e ele consente em habitar com ela, não o deixe … Mas, se o descrente se apartar, aparte-se; porque neste caso o irmão, ou irmã, não está sujeito a servidão, mas Deus chamou-nos para a paz”. Isto não significa um divórcio. Significa que esta pessoa não é culpada se não cumprir as suas responsabilidades no casamento. Não significa que o laço matrimonial cessa de existir, mas que a pessoa não é obrigada a cumprir os deveres matrimoniais quando o cônjuge sai de casa.

Os vs. 27 e 28 também são muito importantes: “Estás ligado à mulher? Não busques separar-te. Estás livre de mulher? Não busques mulher. Mas, se te casares, não pecas”. As palavras “Estás ligado à mulher? Não busques separar-te” não significam “És casado? Não procure divórcio”, como alguns ensinam. Também, as palavras: “Estás livre de mulher? Não busques mulher”, não significam “És divorciado? Não procures casar-te de novo”. Também as palavras “Mas, se te casares, não pecas” não significam “mas, se depois de se divorciar casares de novo, não pecas”. Este é o ensino de alguns hoje, mas é um grave erro de interpretação da Palavra de Deus.

As palavras “Estas livre de mulher? Não busques mulher” são traduzidas por J. N. Darby da seguinte maneira: “És solteiro? Não procures esposa”. As palavras “Mas, se casares, não pecas”, se referem ao casamento, não a um novo casamento depois do divórcio! O homem solteiro que se casa não peca, “todavia, os tais terão tribulações na carne”! F. F. Bruce deixa o sentido destes versículos bem claro: “Você é casado com uma mulher? Não tente desfazer o laço do casamento. Você é solteiro? Não procure uma esposa. Mas, se casar, você não pecou …”

Em casos quando o marido ou a esposa abandonam seus cônjuges, estes precisam ficar sozinhos. O seu casamento continua válido perante Deus.

I Coríntios 6:11

Alguns citam I Co 6:11: “E é o que alguns têm sido, mas haveis sido lavados, mas haveis sido santificados, mas haveis sido justificados em nome do Senhor Jesus, e pelo Espírito do nosso Deus”. Ao citar estas palavras eles procuram dizer que os coríntios continuaram com os seus antigos relacionamentos, depois da sua conversão. Entretanto, é evidente que aqueles que receberam esta carta, embora no passado vivessem em pecado, tinham mudado seu estilo de vida como resultado da sua salvação. Este versículo será considerado detalhadamente no cap. 5 deste livro.

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