Autonomia e Autoridade

O texto abaixo é a íntegra do livrete de mesmo título publicado pela eSd [comprar]


Prefácio

A natureza distinta que a igreja local possui é claramente ensinada no Novo Testamento. Apesar disto, os séculos passados registram os ataques satânicos à verdade básica do governo na igreja local. Por um lado, o ministério centralizado num único homem, tão comum na cristandade, é um desvio grande do padrão divino; e, infelizmente, onde houve um retorno considerável à simplicidade do Novo Testamento neste assunto, houve também, em alguns lugares, o estabelecimento de uma “liderança regional”, igualmente contrária à vontade revelada de Deus.


Michael Browne é um bem conhecido e respeitado missionário e ensinador da Palavra de Deus. Atualmente ele viaja por diversas partes do mundo servindo ao Senhor. Tendo conhecido nosso irmão por vários anos, é meu privilégio e prazer poder estar associado com este livrete, onde o ensino correto do Novo Testamento quanto a estas áreas importantes da verdade é claramente apresentado. Este livrete é recomendado a todos, trazendo um ministério sadio, bíblico e bem atual para estes dias e esta geração.

J. R. Baker

Igrejas locais em Atos dos Apóstolos

No início, as igrejas locais permaneciam em pureza doutrinária e ordem divina enquanto “perseveravam na doutrina dos apóstolos” (At 2:42). Elas seguiam a exortação do amado apóstolo aos gentios, que disse: “Sede meus imitadores, como também eu de Cristo” (I Co 11:1), e sendo espirituais, reconheciam que as coisas que Paulo escrevia eram “mandamentos do Senhor” (I Co 14:37). Consequentemente, a história do livro de Atos dos Apóstolos nos mostra igrejas locais sendo formadas como resultado de testemunho evangelístico, e estas igrejas sendo dirigidas pelos seus próprios anciãos locais, sendo portanto independentes ou autônomas. Esta pureza apostólica e ordem divina, vistas no início, logo se perderam de vista, enquanto os homens se afastavam cada vez mais dos princípios originais, colocando suas próprias ideias e tradições como substitutos da Palavra de Deus. Este afastamento brotou do orgulho e da rivalidade humana, e de uma disputa por poder que produziu um sistema clerical, e resultou numa hierarquia sacerdotal que dominava sobre as igrejas. Homens poderosos centralizaram todo o governo da igreja em si mesmos, e, enquanto continuavam a lutar uns contra os outros, foram criando divisões, nascendo o Catolicismo e as Igrejas Ortodoxas. Com o passar do tempo, e com a continuidade da operação do “mistério da injustiça” [veja Nota 1] (aquele sistema insubordinado que destrói a unidade, harmonia e ordem do propósito de Deus para cada dispensação, e que atingirá seu clímax quando o Iníquo se apresentar como substituto do Justo; isto é, o Homem do Pecado em lugar do Cristo de Deus ), ocorreram outras divisões, até mesmo entre os que, “protestando” contra o mal do sistema Babilônico do Catolicismo, o haviam abandonado; nasceram, assim, as várias organizações denominacionais da cristandade. No início, porém, não era assim.

A única organização revelada no Novo Testamento com autoridade para disciplinar, guiar e instruir o povo de Deus é a igreja local [veja Nota 2]. O mais alto tribunal de apelação para presidir entre irmãos é a igreja local. O único corpo do qual servos foram enviados para pregar e ensinar, no Novo Testamento, é a igreja local. Não há qualquer outra organização ou corpo, além da igreja local, mencionada nas páginas inspiradas do Novo Testamento, nem mesmo a menor sugestão de algo parecido.

Fundadas por ministério apostólico

Estas igrejas foram fundadas pelo ministério apostólico, começando no dia de Pentecostes quando, no poder do Espírito Santo enviado dos céus, pregaram arrependimento para remissão de pecados no nome de Jesus Cristo (Atos 2). Depois disto, o método apostólico consistia em sair de uma igreja local, após um chamado do Espírito Santo (reconhecido, de bom grado, pela igreja local, que os recomendava à graça de Deus; At 13:1-4; 14:26), para a “obra” à qual tinham sido divinamente chamados. Esta “obra” era fundar outras igrejas locais, iguais em sua constituição e natureza àquela de onde haviam sido recomendados (At 14:23). Não houve, em todo o trabalho apostólico visto no Novo Testamento, nada além da igreja local em termos de organização ou autoridade das igrejas. Todo trabalho espiritual no período de autoridade apostólica, que é o padrão para todas as gerações sucessivas desta era da igreja, foi desenvolvido tendo como base a igreja local, e com o objetivo de estabelecer outras e semelhantes igrejas.

Enfatizamos que, no Novo Testamento, não havia qualquer organização, além da igreja local, intrometendo-se entre o obreiro e sua recomendação, com poder para autorizar ou recusá-la, e nem entre uma igreja já estabelecida há tempos e outra recém-formada, a não ser o missionário-evangelista chamado e usado por Deus.

Antioquia

Mesmo na estratégica missão aos gentios, baseada em Antioquia (At 13:1-3), a igreja original em Jerusalém não teve parte, nem foi consultada, e seus apóstolos nem foram envolvidos. Era uma obra administrada inteiramente pelo soberano Senhor, envolvendo apenas a igreja independente e autônoma em Antioquia.

W. E. Vine, comentando sobre este ponto fundamental, escreve: “Uma grande expedição missionária foi iniciada em Antioquia, mas ao invés de ocorrer sob a autoridade de Jerusalém, foi dirigida em total independência dos apóstolos dali, e até de seus delegados (At 13:1-3). Acontecimentos em Jerusalém, portanto, não oferecem nenhum apoio para o estabelecimento de um centro controlador para a organização de igrejas locais. É uma busca inútil procurar, em Atos e nas epístolas, qualquer sugestão do estabelecimento de tal instituição”.

Devemos concluir, portanto, que se o Senhor, ao iniciar uma obra tão importante como esta (estabelecer igrejas locais entre os gentios, em terra dos gentios), ignorou um centro importante como Jerusalém, e se Ele fez esta obra através de uma igreja local independente, então é porque isto foi estabelecido por Ele como sendo o princípio de operação divina para toda esta era da igreja. Cristo não trabalha através de um centro ou corpo eclesiástico revestido de autoridade, que tenha poder sobre muitas igrejas (mesmo quando o centro, como Jerusalém, continha os apóstolos que Ele próprio escolhera), mas Ele opera direta e soberanamente através de igrejas locais autônomas, que dependem dEle e são responsáveis somente a Ele!

Assim surge, novamente, este grande fato: a única organização vista no Novo Testamento é a igreja local; qualquer passo além disto é contrário às Escrituras e, portanto, inadmissível.

Dois usos da palavra Ekklesia

Para entender melhor a natureza da igreja local, devemos distinguir seus dois aspectos no Novo Testamento. Nossa palavra “igreja”, ou “assembleia”, é a tradução da palavra grega ekklesia (literalmente, “chamados para fora”) que, com exceção de três ocorrências isoladas, é aplicada exclusivamente aos crentes em Cristo desta presente dispensação, que foram chamados para fora, ao encontro de Deus e da salvação, pela mensagem do Evangelho.

Em primeiro lugar, é usada para descrever o número total dos redimidos em toda a era da igreja, desde Pentecostes até a Parousia [veja Nota 3], quando Cristo voltará para buscar a Sua Igreja. Vemos este uso da palavra na revelação do Senhor a Pedro: “Edificarei a Minha igreja” (Mt 16:18), e também na sua descrição, “a igreja, que é o Seu corpo” (Ef 1:22-23). Aqui temos, então, a Igreja como “o corpo”, que inclui todos os verdadeiros crentes em nosso Senhor Jesus Cristo, quem quer que sejam e aonde quer que estejam espalhados pelo mundo, além de todos os que já estão no lar, nos céus, com o Senhor. Eles creram em Cristo, são participantes de Sua vida, e foram unidos a Ele de forma indissolúvel, sendo “batizados … formando um corpo” (I Co 12:13). Todos os crentes, portanto, são membros do corpo de Cristo, e estão unidos a Ele, o Cabeça, em união orgânica. Descrevendo este aspecto da ekklesia, J. M. Davies escreve, em seu livro The Lord and the Churches: “A Igreja, então, é o conjunto de todos que são membros do corpo de Cristo, todos os verdadeiros crentes em nosso Senhor Jesus Cristo, independentemente de diferenças raciais ou nacionais, filiação denominacional ou crescimento e iluminação espiritual. Isto elimina, automaticamente, a ideia de que a Igreja e a cristandade são sinônimos. Esta última inclui toda a massa que professa ter o nome de Cristo, mesmo que esta profissão não se assemelhe, em nenhum aspecto, com o que é verdadeiro do cristianismo e da experiência cristã”.

Em segundo lugar, ekklesia é usada de um grupo de cristãos que se reúnem em sua localidade para adorar a Deus, testemunhar para Cristo, e dar expressão coletiva da vida sobrenatural que têm em Jesus Cristo. Estas igrejas estão ligadas claramente, no Novo Testamento, com a localidade onde se reúnem; assim, lemos da “igreja de Deus que está em Corinto” (I Co 1:2), ou “os santos em Cristo Jesus que estão em Filipos” (Fl 1:1), e, novamente, escrevendo a Priscila e Áquila, Paulo fala da “igreja que está em sua casa” (Ro 16:5). Nunca lemos, no Novo Testamento, de uma confederação de igrejas distinguidas por um nome coletivo — são sempre igrejas locais, tendo identidade própria e sendo tratadas como tais, conforme acabamos de ver. Além disto, estas igrejas jamais são descritas como sendo igrejas distritais, regionais, nacionais ou internacionais [veja Nota 4], mas sempre e somente como igrejas numa localidade. E estas igrejas nunca tiveram qualquer autoridade ou poder central para controlá-las. Eram autônomas e sujeitas apenas ao senhorio de Cristo, livres de toda interferência externa que poderia escravizá-las ao domínio de homens. O historiador E. H. Broadbent, em The Pilgrim Church, distingue estes dois aspectos da ekklesia de Deus, isto é, a Igreja como “o Corpo” e seu aspecto local, ao comentar: “O Novo Testamento revela a Igreja de Cristo, nascida de novo mediante a fé no Filho de Deus e feita participante da vida divina e eterna (Jo 3:16). Como este corpo (a Igreja de Cristo) não pode agir e nem ser visto num único lugar, pois vários de seus membros já estão com Cristo e outros estão espalhados pelo mundo, ele deve ser visto, e manifestar seu testemunho, na forma de igrejas de Deus em vários lugares e em tempos diferentes. Cada uma dessas igrejas locais é composta daqueles discípulos do Senhor Jesus Cristo que, na localidade onde vivem, reúnem-se ao Seu nome. Para estes foi prometida a presença do Senhor em seu meio, e a manifestação do Espírito Santo é concedida de diversas formas através de todos os membros (Mt 18:20; I Co 12:7). Cada uma dessas igrejas está diretamente relacionada ao Senhor, recebe dEle a sua autoridade e é responsável a Ele (Ap 2 e 3). Não há qualquer sugestão de que uma igreja deveria controlar outra, ou de que deveria existir uma união organizada de igrejas, mas uma comunhão pessoal e íntima as une (At 15:36; 11:27-30 etc.)”.

Supremacia de Cristo

O único Cabeça da Igreja é Jesus Cristo, seu Senhor. Nenhum Moderador, Presidente, ou Papa pode usurpar esta posição, nem se intrometer legitimamente na esfera do senhorio de Cristo sobre Suas igrejas. O senhorio de Cristo abrange toda a Sua Igreja, o corpo do qual Ele é Cabeça (Ef 1:22-23) que é Sua possessão particular, sendo chamada por Ele de “minha Igreja” (Mt 16:18), e também o aspecto “local”, como vemos principalmente na visão concedida a João (Ap 1:12-13). Nesta visão, cada uma das sete igrejas é vista como um castiçal distinto, tendo sua própria base e sendo responsável diretamente ao Senhor que está no meio. Não havia qualquer agente intermediário entre a igreja e o Senhor. Nenhum comitê central de representantes das igrejas, nenhum sínodo ou concílio, nenhum bispo metropolitano, arcebispo ou cardeal — o Senhor agia com autoridade, direta e pessoalmente, com cada uma das Suas igrejas. E esta visão, com as cartas às sete igrejas, foi entregue como tendo uma mensagem para o povo de Deus em toda a era cristã. Ela abrange o testemunho atual de Cristo na Terra, desde os dias dos apóstolos até ao nosso tempo, nesses “últimos dias”. Isto significa, claramente, que a visão é para nós e para as igrejas de hoje! A visão mostra claramente que, durante a era da Igreja, nenhuma autoridade central pode ser aceita entre as igrejas de Cristo, e mostra isto com a intenção de manter os castiçais de ouro, pertencentes a Cristo, livres da pretensão e escravidão eclesiástica.

Citando J. M. Davies novamente: “Cada uma das igrejas da Ásia, mencionadas em Ap 1-3, era um castiçal separado, não reconhecendo qualquer autoridade a não ser a do Senhor que estava no meio. Apesar disto, as cartas endereçadas a cada uma individualmente eram a mensagem do Espírito às igrejas. Isto concorda com o ensino de I Coríntios. Embora escrevendo expressamente à igreja de Deus em Corinto, o apóstolo logo acrescenta estas importantes palavras: ‘com todos os que em todo lugar invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo’. O laço que unia tais grupos não era um laço governamental, decorrente do fato de serem aceitos dentro de um determinado círculo de comunhão, mas um laço vital, dependente de uma unidade essencial e orgânica. Obrigatoriamente compartilhavam algumas características comuns, pois os apóstolos ensinavam as mesmas coisas, ‘por toda a parte … em cada igreja’ (I Co 4:17; 7:17). Além dos castiçais estarem separados, com o Senhor no meio, as estrelas estavam em Sua mão direita. Estavam diretamente sob Seu controle. O Novo Testamento não contempla a hipótese dos servos de Deus integrarem uma missão com diretoria e presidente”. Este fato também estabelece a regra de que os servos de Cristo estão em Sua mão, chamados e dirigidos por Ele, movendo-se sob Sua mão traspassada, servindo aos Seus interesses na Igreja, e através dela. Não são servos de homens, que podem ser contratados e dispensados à vontade; eles possuem a dignidade de verdadeiros servos de Deus, expondo a mente de Cristo e ensinando a verdade de Sua palavra.

Mantendo o Cabeça

Embora o senhorio de Cristo é real, nem sempre ele é respeitado na prática. Reconhecido teoricamente por declarações de credo, é muitas vezes desprezado, na prática, pelas instituições humanas e pelas tradições dos homens. Em Cl 2 Paulo trata desta verdade, e alerta contra os falsos ensinadores que não “retém a cabeça” (v. 19, ARA), e tentam levar outros após si. Era um desafio ao senhorio de Cristo. Ele mostra que os colossenses haviam recebido Cristo como Senhor, andavam nEle, estavam “arraigados e sobreedificados nEle, e confirmados na fé” em Sua pessoa, e por meio dEle tinham condições de se livrar das filosofias vãs e tradições dos homens. Isto é, o único senhorio, ou liderança, que reconheciam era dAquele que é “a Cabeça de todo principado e potestade”, e nEle estavam completos, não necessitando de outra coisa ou pessoa. Seu senhorio divino era todo-suficiente para eles, e nisto achavam uma plenitude que satisfazia completamente (Cl 2:6-10).

Assim, retendo o Cabeça (v. 19) de quem todo o corpo deve viver, mantinham-se supridos de todo alimento espiritual que constantemente fluía do Cabeça para toda a Igreja, e cresciam da maneira como Deus pretendia. O centro da exortação de Paulo, aqui, é que o cristão não necessita de um senhorio intermediário ou mediatório, seja natural e terreno ou sobrenatural e celestial, para que possa crescer e desenvolver; possuindo, porém, um Cabeça celestial todo-suficiente, ele deve retê-Lo, reconhecendo Seu senhorio como excluindo qualquer outra autoridade.

Torna-se, portanto, um erro dos mais graves, à luz de tal ensino, a intervenção de um homem, ou grupo de homens, entre o Cabeça celestial, Cristo, e Seus membros sobre a Terra. Cristo, e Cristo apenas, é o Cabeça, e qualquer outro que deseja ter poder ou controle sobre Seu povo está se intrometendo presunçosamente, e deveria ser terminantemente rejeitado pelos santos que insistem no direito de reter o Cabeça.

Autonomia e possessão Divina

O caráter autônomo das igrejas do Novo Testamento se deve ao fato que são possessão divina (At 20:28). Elas pertencem a Deus, e não ao homem. Fundadas na vontade do Pai desde a eternidade (Ef 1:3-6), redimidas pela obra sacrificial do Filho (Ef 1:7-12), e unidas a Ele pelo poder e presença do Espírito Santo (Ef 1:13-14), elas são integralmente de Deus, e existem para propósitos divinos. Estes propósitos são adoração a Deus (Jo 4:21-24) e testemunho aos homens (Mt 28:18-20; Atos 1:8), enquanto aguardam a consumação divina da glória de Deus (Ro 5:1-2; Fl 3:20-21), quando os propósitos eternos de Deus serão consumados (Ef 3:20-21).

Não há nada humano na verdadeira igreja neotestamentária a não ser seus membros, e mesmo eles são agora um povo espiritual e celestial, “santos em Cristo Jesus” e “peregrinos e forasteiros”, possuem o Espírito de Deus, são a possessão resgatada de Jesus Cristo, cuja habitação está nos céus (Fl 3:20; Hb 12:23).

O próprio nome que descreve a igreja local sugere esta possessão divina — ela é chamada de “casa de Deus” (I Tm 3:15); sua natureza é essencialmente espiritual, pois o Espírito de Deus nela habita (I Co 3:16); e seu propósito é proclamar o Evangelho de Deus, centralizado na pessoa e obra de Jesus Cristo, o Filho de Deus. Tudo isto comprova o fato do senhorio e controle divino sobre as igrejas locais cujo nome, natureza e propósito refletem a obra gloriosa da Trindade — uma obra central nos propósitos eternos de Deus, e executada nesta dispensação por intermédio da igreja local (Ef 3:9-11, etc.).

Sendo uma possessão divina, e fazendo parte dum propósito tão glorioso e eterno, é inadmissível que tal igreja seja entregue nas mãos presunçosas de um grupo controlador humano. Cristo disse, da Igreja: “Minha Igreja”; portanto, deve ser sujeita à Sua autoridade, como Comprador e Senhor. Ele tem total direito, por tê-la comprado, de impor os Seus termos, governando sua vida e bem-estar para cumprir o propósito de Sua compra. O princípio de Mt 20:15 é plenamente aplicável aqui: “Não me é lícito fazer o que quiser do que é meu?” A prerrogativa da possessão divina é o governo divino sobre Sua possessão adquirida, sem qualquer ordem para um governo intermediário humano, além daquele apontado pelo Possuidor. O único governo que Ele sancionou na Sua igreja é local, mediante a liderança conjunta de anciãos ou pastores (cujas funções veremos mais adiante).

Seria presunção audaciosa alguém entrar na casa de outro e começar a dar ordens aos empregados, mudar a ordem da casa, e impor sua vontade sobre as crianças. Isto logo desagradaria o proprietário! Assim também com a casa de Deus; não temos o direito de impor ou introduzir algo em Sua casa que seja contrário aos Seus direitos de Senhor, e à Sua expressa vontade.

Autonomia — três aspectos

Em relação à igreja local, autonomia abrange três aspectos importantes, todos incluídos no conceito geral de independência ou responsabilidade local. Estes aspectos são: independência de governo ou controle, independência de apoio ou manutenção, e independência de testemunho ou propagação. Assim, as igrejas locais neotestamentárias eram autogovernadas, auto-mantidas e auto-propagadoras, não dependendo e nem responsáveis a qualquer autoridade ou fonte externa, mas entregues inteiramente ao Senhor, de quem dependia sua existência.

A essência do conceito de igrejas locais independentes é que elas são capazes de manter a sua própria existência e testemunho num mundo hostil, e podem andar sozinhas, espiritualmente. Este é o padrão visto nos dias dos apóstolos, quando, após a pregação do Evangelho e a consolidação dos frutos do seu trabalho (confirmando os ânimos dos discípulos e indicando anciãos em cada igreja), “os encomendaram ao Senhor em quem haviam crido” (At 14:21-23), e seguiram adiante. É importante perceber que eles não organizaram confederações nacionais, provinciais ou distritais de igrejas, com um sistema centralizado de controle, ou uma matriz das igrejas locais, ou um nome para o grupo — pelo contrário, cada igreja era responsável pelo desenvolvimento e manutenção de sua própria administração e vida comum, sob o senhorio de Cristo.

Definição duma igreja independente

A igreja local que é realmente independente, pelo padrão neotestamentário, é uma que:
  • reúne-se somente ao nome do Senhor Jesus Cristo, tendo a Sua presença sublime no seu meio, uma igreja celestial, pura, e separada (Mt 18:20; II Co 6:16-17);
  • aceita como única base para o ministério, revestida de autoridade, a pregação da Palavra de Deus em sua totalidade, tanto no Evangelho quanto em ensino (At 20:24, 27), com liberdade para o exercício de todos os dons espirituais, sob a direção e soberania do Espírito (Ef 4:11-12; I Co 12; Ro 12; etc.);
  • celebra corretamente as ordenanças da igreja, isto é, o batismo e a ceia do Senhor;
  • exerce disciplina fiel para manter ordem espiritual e pureza doutrinária e moral.
Este último ponto indica que deve haver uma liderança biblicamente correta funcionando através dos anciãos escolhidos pelo Espírito, que serão responsáveis por este cuidado geral e proteção do rebanho de Deus.

Baseados nisto, sabemos que uma congregação autônoma não está sujeita a controle episcopal, papal ou de concílios, mas é auto-governante. Todo o controle e autoridade residem no supremo Senhor que está no meio da congregação e que, por intermédio de Seu Espírito, guia através de pastores ou anciãos. Portanto, não há qualquer lugar para o processo democrático de votação, que nega claramente a soberania do Senhor e a direção do Espírito.

Éfeso, a igreja padrão

As características de uma igreja local são vistas especialmente na igreja em Éfeso, que se torna, devido à sua posição estratégica na revelação neotestamentária, a congregação padrão para esta era da igreja. Paulo a descreve, falando aos seus anciãos em At 20:28, como “o rebanho sobre que o Espírito Santo vos constituiu bispos, para apascentardes a igreja de Deus, que Ele resgatou com Seu próprio sangue”. Desta descrição, percebemos que era uma igreja:
  • onde o Espírito Santo era soberano, pois foi apenas Ele quem constituiu bispos, levantando-os de dentro da própria igreja, independentemente de qualquer sínodo, concílio, estabelecimento teológico ou eleição local, e dando-lhes a capacidade e o desejo de alimentar e guiar o rebanho de Deus;
  • onde o governo era autônomo sob uma liderança pluralista, pois Paulo chamou “os anciãos da igreja” (v. 17) que são chamados “bispos” no v. 28 — nenhum homem é visto como tendo autoridade sobre outros anciãos ou sobre a igreja;
  • onde o direito de ser membro era baseado no resgate pelo sangue, “a igreja de Deus, que Ele resgatou com Seu próprio sangue” (v. 28), mostrando que apenas cristãos resgatados pelo sangue do Senhor Jesus é que têm o direito de ser membros desta igreja santa;
  • onde a congregação é um rebanho espiritual, possessão do único verdadeiro Pastor, que os chamou de “Minhas ovelhas” (Jo 10:27), e que, portanto, reúne-se ao redor dEle, o “grande Pastor das ovelhas” (Hb 13:20).

Uma autoridade tripla

Há uma autoridade tripla à qual todas as igrejas locais se sujeitam:
  • As Escrituras, sendo a Palavra de Deus, são a única autoridade e o guia infalível em todos os assuntos práticos da igreja, e o único juiz que pode legislar em questões de controvérsia (II Tm 3:16-17; I Tm 3:14-15; II Tm 1:13-14). Qualquer igreja que ignora esta autoridade suprema põe em dúvida seu direito de se chamar uma igreja (At 2:42). Além disto, as Escrituras não podem ser repudiadas, nem sua autoridade ser questionada pela igreja. A igreja em Corinto era culpada de tal atitude em relação ao silêncio e sujeição das irmãs nas reuniões públicas, e recebeu a repreensão de Paulo quando este escreveu: “Porventura saiu dentre vós a Palavra de Deus? Ou veio ela somente para vós?” (I Co 14:36). Isto nos ensina duas verdades importantes relacionadas à autoridade das Escrituras; em primeiro lugar, a igreja local não cria a verdade, mas deve se sujeitar a ela; e, em segundo lugar, a igreja local recebe a Palavra de Deus juntamente com todas as outras igrejas locais — não há uma verdade especial para uma determinada igreja, nem para qualquer país ou região, diferente das demais. A verdade é igual para todas as igrejas, independentemente de lugar ou circunstâncias, língua ou raça, e vem de uma autoridade suprema — Deus! O ensino dos apóstolos são “mandamentos do Senhor” (I Co 14:37). A igreja local está debaixo da autoridade da Palavra de Deus.
  • A autoridade interna e prática, dentro da igreja, é administrada pelo Espírito Santo através dos anciãos (At 20:28), descritos como “vossos pastores” (Hb 13:17). A palavra traduzida “pastores” significa, literalmente, guias ou dirigentes, e indica que os anciãos de uma igreja local são os guias ou líderes espirituais que, andando à frente dos santos, como o pastor com seu rebanho, guiam por meio de um exemplo santo e humilde (I Pd 5:3). Seu relacionamento com a igreja não é como o de reis e súditos, ou mestres e servos (este é o padrão dos gentios), mas sua autoridade é espiritual e moral, e é exercida por meio de serviço humilde a favor do rebanho de Deus (Lc 22:25-26).
  • Cristo mesmo é a autoridade suprema, tanto sobre as igrejas locais como um todo, sendo Ele o único Cabeça (Ef 1:22), quanto no meio de qualquer igreja local, sendo o único Senhor (I Co 1:2; 8:6); somente por meio desta autoridade é que os anciãos exercem disciplina (Mt 18:20). Este versículo, quando entendido corretamente em relação ao seu contexto, faz com que a presença de Cristo entre os “dois ou três”, representando toda a igreja, seja a base da sua autoridade para ligar ou desligar, pela disciplina, o transgressor (vs. 15-17). A Sua presença tanto serve para guiá-los nas orações quando houver dúvidas ou perplexidades (v. 19), quanto para confirmar a decisão deles (v. 20). O v. 20 é a frase determinante nesta passagem, e ensina categoricamente que a mais alta e mais solene autoridade para julgamento, o maior tribunal de apelação para o cristão na terra, é a igreja local com Cristo “no meio”.
Nenhuma outra pessoa ou grupo tem esta autoridade ou promessa das Escrituras, e o cristão não deve se submeter a qualquer outra autoridade! Sendo assim, que negação da autoridade e senhorio de Cristo, e que desprezo para com a Sua presença e palavra, estão implícitos no ato de colocar o centro de autoridade não na igreja local, mas em uma pessoa ou grupo eclesiástico.

O crente em Cristo, como membro da igreja local, submete-se à autoridade tripla da Palavra de Deus, dos anciãos da igreja local, e do senhorio e presença do seu Senhor. Ele não precisa se curvar perante qualquer outra autoridade espiritual, nem temê-la. Ele foi liberto do poder de Satanás, da ameaça da Lei, e dos laços eclesiásticos dos homens, e agora obedece à exortação enfática de Paulo: “Estai pois firmes na liberdade com que Cristo nos libertou, e não torneis a meter-vos debaixo do jugo da servidão” (Gl 5:1).

Anciãos e sua indicação

O fundamento das igrejas locais é aquele lançado pelos “apóstolos e profetas” (Ef 2:20), ou seja, as doutrinas ensinadas pelos apóstolos referentes à pessoa e obra de Jesus Cristo, conforme Paulo explica em I Co 3:11-12. Os anciãos, porém, é que foram encarregados do cuidado diário destas igrejas de Deus.

A era dos apóstolos passou — eles não estão mais conosco para ordenar, repreender, instruir ou governar entre as igrejas locais. A única autoridade apostólica que permanece é a doutrina, não a posição; a voz apostólica hoje é ouvida apenas nos escritos apostólicos do Novo Testamento. Não houve nenhuma pessoa ou grupo (como um sínodo ou concílio) a quem foi transmitida a autoridade dos apóstolos quando estes morreram — apenas humildes anciãos, conforme vemos no Novo Testamento, sendo encarregados do cuidado da igreja de Deus (I Tm 3:5).

É um fato notável e importante que, aproximando-se do final da era apostólica, durante os últimos anos do período abrangido pelo Novo Testamento, os apóstolos começaram a referir-se a si próprios como “anciãos”! Pedro, exortando os anciãos, refere-se a si mesmo como “presbítero com eles” (I Pd 5:1), e João, o último dos apóstolos, era conhecido entre os cristãos pelo simples título de “o ancião” (ou “o presbítero”, II Jo 1, III Jo 1). Obviamente isto indica que quando os apóstolos estavam prestes a ir para a glória, tendo terminado seu ministério e serviço, seu lugar estava sendo ocupado não por outra geração de apóstolos com autoridade universal como os Doze e Paulo, mas pela instituição de um presbitério que tinha responsabilidade sobre a igreja na sua localidade!

Indicados dentro da igreja local

Estes anciãos, como temos visto, eram escolhidos pelo Espírito Santo (At 20:28), que preparava-os e qualificava-os no meio de seus irmãos na igreja local. Isto fica claro pela expressão “sobre o qual…” [veja Nota 5], e pela linguagem usada em I Pd 5:1: “presbíteros, que estão entre vós”. Anciãos são o resultado direto da operação do Espírito Santo, escolhendo e capacitando homens que estavam “no meio” e “entre” os cristãos que formavam a igreja local. Não eram importados de outro lugar, nem formados numa instituição teológica, nem apontados por algum grupo ou pessoa eclesiástica — eram homens escolhidos unicamente pelo Espírito de Deus, de entre a congregação da qual faziam parte.

Os títulos usados para descrevê-los indicam as suas características e as funções que exerciam. São chamados “anciãos” (At 20:17), indicando que eram homens de maturidade e experiência espiritual. Em At 20:28, são chamados “bispos”, mostrando que seu serviço era zelar pelo bem-estar da igreja local. Eles são exortados a apascentar a igreja de Deus que é chamada de “rebanho”, indicando que eles também são pastores (diferente, porém, do dom de “pastores e doutores” em Ef 4:11, que é um ministério para o Corpo, distinto da igreja local).

Diferença entre dom e governo

Devemos notar que no Novo Testamento os anciãos somente têm responsabilidade no contexto da igreja local onde se encontram — é uma responsabilidade local. Nisto eles se diferem dos “dons”, ou homens que receberam dons, de Ef 4:11. Estes não são locais, nem restritos a uma localidade, mas são a provisão do Senhor para todo o Corpo de Cristo (v. 12). Isto é, um evangelista pode usar seu dom, com autoridade, em qualquer lugar onde há uma expressão do Corpo de Cristo (onde houver condições bíblicas para isto), assim como o pastor-ensinador. O uso dos seus dons será exercido onde eles se encontrarem, e será mais abrangente do que uma localidade. Se mudassem de Éfeso para Roma ou Társis, continuariam trabalhando como evangelistas ou ensinadores, porque são homens que receberam dons para “o aperfeiçoamento dos santos … para edificação do corpo de Cristo” (Ef 4:12). Mas a esfera de liderança e autoridade para o ancião é apenas local. Caso um ancião em Éfeso mudasse para Corinto, ele não levaria sua autoridade com ele, e não poderia exercer autoridade na igreja em Corinto ao chegar lá! Obviamente ele mantém sua compaixão e preocupação pelo bem-estar dos santos, assim como sua experiência — mas não sua autoridade. Presbitério é a provisão de Deus para a direção e o bem-estar de Suas igrejas locais, como vemos pelo fato de indicarem “anciãos em cada igreja” (At 14:23).

Quem indica anciãos?

Nos primeiros dias do estabelecimento do ministério entre os gentios na Ásia, os anciãos eram indicados pelos apóstolos-missionários em cada igreja que era plantada como fruto da pregação do Evangelho (At 14:21-23). Como eles sabiam a quem indicar? Havia qualquer característica que distinguia estes homens dos demais? Ou eram simplesmente escolhidos por votação, baseado em sua popularidade? W. E. Vine, em seu livro The Divine Plan of Missions, comenta sobre a indicação de anciãos: “Obviamente a escolha de anciãos era trabalho direto do Espírito de Deus. Os apóstolos, ao indicá-los, estavam reconhecendo a ordenação prévia dEle; aqueles a quem Ele havia anteriormente ordenado e espiritualmente equipado, agora iriam receber o reconhecimento da igreja local em cada caso”.

Os apóstolos viam, nos homens que eles apontavam, marcas e qualidades espirituais que os capacitavam para liderança na igreja local. Estas qualidades eram dadas por Deus, e nutridas pelo Espírito que neles habitava, e prontamente reconhecidas por homens de percepção espiritual. Assim, eram reconhecidos pelos apóstolos publicamente, diante de toda a igreja local.

A forma como eram reconhecidos é sugerida pela palavra usada em At 14:23, “eleito” (no grego, cheirotoneo, que significa esticar ou estender a mão). Assim, os apóstolos apontavam, ou indicavam, os homens em quem eles haviam visto as marcas do Espírito Santo qualificando-os para o trabalho de anciãos. Tentar fazer com que esta palavra indique algo mais, como alguns fazem, e tentar usá-la para justificar um sistema de votação pública, é forçar e distorcer o sentido claro desta passagem e falsificar a Escritura. Aqui o sentido do verbo cheirotoneo deve ser entendido, no contexto, como uma indicação para um cargo sem votação. Isto é enfatizado pelo fato que o sujeito dos verbos usados nesta passagem (vs. 21-23), “voltaram”, “confirmando”, “exortando”, “havendo-lhes … eleito”, “orando”, “encomendaram ao Senhor”, é sempre o mesmo. Todos estes verbos indicam o que os apóstolos fizeram, não o que as igrejas fizeram! Portanto, o verbo traduzido “havendo-lhes … eleito” indica o que foi feito pelos apóstolos diante de cada igreja local, indicando quem eram os anciãos. Como William Hoste comenta, oportunamente: “Há realmente algo de ridículo na ideia de Paulo e Barnabé elegendo por votação popular!”

Com o passar do tempo e o surgimento de uma segunda geração de missionários, encontramos o apóstolo Paulo transmitindo-lhes a percepção que ele havia recebido por inspiração do Espírito, e estabelecendo-a, pela providência divina, para todas as gerações sucessivas, através das cartas que ele escreveu a estes obreiros. Assim, ao escrever a Timóteo (I Tm 3:1-7) e descrever as qualidades morais e espirituais necessárias em um irmão que aspira ao trabalho de um ancião, ele estava simplesmente transmitindo-lhe as qualidades que ele havia visto nos irmãos em Listra, Icônio e Antioquia lá em Atos 14, pelas quais ele soube que eram homens indicados pelo Espírito Santo. Suas qualificações eram exatamente os mesmos dons e graças que ele agora transmite a Timóteo como sendo exigências imperativas para alguém que irá cuidar da igreja de Deus. E o mesmo se aplica à sua carta a Tito (Tt 1:5-9). Já que estas cartas, inspiradas e revestidas de autoridade, foram preservadas pela providência divina até hoje, podemos aceitá-las como tendo sido escritas para nós e para nossa direção, para nos ajudar a reconhecer, em nossa geração, quem na igreja local é realmente um ancião levantado pelo Espírito, e, se tais qualidades estão faltando, quem não é.

Tito estabelecendo anciãos

A base para Tito estabelecer presbíteros “de cidade em cidade” (Tt 1:5) foi a ordem verbal dada por Paulo quando ele o deixou em Creta, depois de um período de trabalho no Evangelho que havia resultado em igrejas locais sendo estabelecidas ali. Estas igrejas não seriam ordeiras ou completas enquanto anciãos não fossem indicados, e enquanto não houvesse uma liderança definida pelo Espírito Santo. Assim, para reforçar a ordem verbal e fazer Tito lembrar da importância desta tarefa, Paulo escreve esta carta.

É muito importante observar que Tito tinha apenas uma carta de Paulo como autoridade para apontar anciãos nestas novas igrejas locais, e não a presença pessoal do apóstolo. Isto ensina, claramente, que hoje não é necessário a presença pessoal de um apóstolo para indicar anciãos, como alguns sugerem; baseando-se neste argumento, eles não reconhecem anciãos, mas governam a igreja local por meio de reuniões “administrativas” dos irmãos, assim esquivando-se de responsabilidade pessoal e negando a Palavra de Deus! Este assunto é sério, pois onde todos são reconhecidos como tendo “responsabilidade” numa igreja, logo torna-se evidente que, na prática, ninguém é realmente responsável, e a situação se complica até que, na ausência de liderança positiva, encontramos, mais ou menos, cada um fazendo o que parece reto aos seus olhos (veja Jz 21:25).

Porém, se a autoridade da presença de Paulo não era necessária em Creta com Tito, era preciso a autoridade de sua carta, e baseado naquela epístola Tito poderia identificar, com segurança, os irmãos que possuíam as características de anciãos, dadas pelo Espírito, e indicá-los perante a igreja local. Também nós, hoje, podemos agir assim. O autor, durante seu ministério missionário em Hong Kong, viu uma igreja local nascendo no meio de um povo totalmente pagão — era uma situação pioneira. Depois de quase um ano reunindo-se e aprendendo da Palavra de Deus, alguns irmãos começaram a se destacar pela sua preocupação com o cuidado da igreja e seu bem-estar; visitavam os santos em suas casas, oravam com os doentes, encorajavam os jovens, e destacavam-se na evangelização, exortando outros a segui-los. Em suma, começaram a manifestar as qualidades características de um ancião ou presbítero em suas vidas perante o Senhor e perante os santos. Vendo isto, e tendo o exemplo de Tito diante de nós, não hesitamos, baseados em Tt 1:6-9, em indicar para a igreja que estas qualidades estavam em evidência nestes irmãos, e que devíamos reconhecê-los como anciãos. A partir daquele momento, eles foram formalmente reconhecidos e respeitados como anciãos, e fizeram o trabalho para o qual Espírito de Deus os capacitara.

Precisamos tomar cuidado, a esta altura, e esclarecer dois pontos importante:
  • Não lemos que a indicação dos anciãos pelos apóstolos ou seus cooperadores incluiu alguma cerimônia formal ou eclesiástica de ordenação. Não tinham vestes especiais, nem eram enaltecidos por títulos que os distinguiam de seus irmãos, ou os elevavam acima deles. W. E. Vine diz, em relação a Tt 1:5: “Não é uma ordenação eclesiástica formal que está em vista, mas a indicação, para reconhecimento da igreja, daqueles que já foram levantados e qualificados pelo Espírito Santo, e que evidenciaram isto em suas vidas e em seu serviço”. Não é uma ordenação humana, como uma cerimônia poderia indicar, mas apenas o reconhecimento, pelos homens, de uma ordenação já feita pelo Espírito.
  • Tito pôde indicar anciãos em Creta com base numa carta apostólica como uma pessoa que esteve envolvida num ministério pioneiro de plantar igrejas locais no meio dos pagãos. Fazendo isto, ele não estava apenas obedecendo uma ordem pessoal de Paulo, mas seguindo o costume apostólico visto desde o começo do trabalho missionário entre os gentios em At 14. Como já sugerimos, o missionário-evangelista ainda pode fazer isto hoje, quando usado por Deus para plantar uma igreja local, como fruto de seus esforços no Evangelho. Mas somente o evangelista pessoalmente, cujo trabalho produziu aquele fruto, pode agir assim. E quando age, ele indica anciãos por sua própria iniciativa espiritual, e não como representante de qualquer comitê, missão ou concílio. Depois, ele avança e deixa a igreja ao cuidado daqueles anciãos indicados. No caso de Tito, não houve a formação de qualquer Igreja Nacional de Creta, englobando as igrejas locais existentes, com algum corpo central ou concílio diretivo, e nem ele tinha qualquer autoridade contínua sobre estas igrejas, nem mesmo uma presença contínua. É bem claro que Paulo nunca pretendia que Tito ficasse ali, pois ele o instrui a vir ter com ele em Nicópolis (que ficava na região grega na Macedônia, centenas de quilômetros de distância) quando Artemas ou Tíquico chegassem em Creta (Tt 3:12).

Estabelecimento contínuo de anciãos

No caso destas igrejas locais, uma vez formadas e estabelecidas na verdade, não tendo mais um apóstolo ou um de seus enviados, anciãos continuariam a ser levantados pelo Espírito Santo no cumprimento fiel de Seu ministério como Aquele que fica para sempre conosco (Jo 14:16). Em cada nova geração de igrejas locais, o Espírito levanta anciãos para pastorear e cuidar delas, e é o dever das igrejas locais simplesmente reconhecê-los, baseados nas suas qualificações encontradas na Palavra, e sujeitar-se a eles no temor de Deus (Hb 13:17). Na prática, este reconhecimento seria feito pelos anciãos já reconhecidos, que poderiam discernir o dom do Espírito em alguns mais jovens, e no devido tempo recebê-los alegremente para o trabalho do presbitério, regozijando-se por Deus estar fielmente mantendo o Seu cuidado misericordioso para com Sua igreja em mais uma geração.

A conferência de apóstolos e anciãos em Jerusalém (At 15)

Há pessoas hoje que veem, nos acontecimentos em Jerusalém em At 15, um precedente para concílios oficiais ainda hoje. Além de tal prática violar toda a essência do ensino neotestamentário referente às igrejas locais, como temos visto, também seria impossível repetir hoje o que aconteceu naquele dia! Foi algo único no Novo Testamento — nunca foi repetido, e nunca pode ser repetido.

A natureza singular do assim chamado “Concílio de Jerusalém” destaca-se por três aspectos:
  • O lugar, Jerusalém, foi onde nasceu a primeira igreja, quando o Espírito foi derramado no dia de Pentecostes. Possuía uma importância especial por ser o lugar onde duas dispensações se encontraram: ali terminou a dispensação da Lei, e ali também nasceu a dispensação da Graça. Jerusalém foi o centro original de onde o Evangelho de Cristo se espalhou pelo mundo, e onde o sangue precioso do futuro Cabeça da Igreja foi derramado em sacrifício. Jerusalém foi, também, o lugar onde o problema em consideração havia se originado (v. 24), e, portanto, considerava-se que teria autoridade nesta questão. O lugar era único, e não há outro semelhante hoje.
  • As pessoas que ali se reuniram eram igualmente únicas, “apóstolos e anciãos” (vs. 4 e 6). Ali era o centro original de ministério apostólico, e a presença e autoridade dos apóstolos abonavam tal ajuntamento — mas como não temos apóstolos hoje para se reunirem com os anciãos, não temos a mesma autoridade para resolver problemas e determinar diretrizes. As pessoas eram únicas, e não há outras semelhantes hoje.
  • O problema era único, relacionado à circuncisão dos gentios e sua observação da Lei de Moisés para alcançar a salvação. Era um problema crucial, cuja resposta iria determinar o rumo da nova dispensação, a libertação dos gentios de todo laço legalista, e a plena suficiência do sacrifício de Cristo para a salvação. Tendo resolvido este problema crucial, nenhum problema semelhante pode, agora, ameaçar as igrejas de Deus, cuja resposta não esteja nas Escrituras.
O concílio de Jerusalém foi, portanto, único e, devido a este fato, é impossível repeti-lo, e ele não estabelece qualquer precedente bíblico válido. W. E. Vine é categórico neste ponto: “Este ajuntamento foi circunstancial, e não pretendia estabelecer um precedente. Não há registro de qualquer outra reunião semelhante nos tempos apostólicos”.

Conclusão

Seguindo somente o exemplo dos apóstolos e o ensino do Novo Testamento, somos forçados a concluir que o controle e a organização de igrejas por um órgão central reivindicando autoridade não é válido. O que vemos, de fato, na prática dos apóstolos é que eles eram recomendados por igrejas locais independentes (At 13:1-3); eles plantavam igrejas locais (At 14:26-27; 15:12, etc.); eles viviam exclusivamente pelo bem-estar das igrejas locais (Cl 1:24-25; II Co 11:28, etc.); e não conheciam outra área de serviço que não fosse a igreja local, como Atos e as epístolas deixam absolutamente claro. De fato, a presença de Cristo, com a autoridade decorrente, é revelada apenas no meio das igrejas locais autônomas (como sendo o ajuntamento coletivo de cristãos, e distinto de qualquer outra organização), apesar do fato que a igreja local não é tanto uma organização, mas sim um organismo, imbuída da vida de Deus (Ap 2:7, 11, 17, etc.). O testemunho final de Jesus é para as igrejas locais (Ap 22:16). Tudo que afeta a adoração, o louvor, o testemunho, e o bem-estar do cristão, portanto, está relacionado, no Novo Testamento, à unidade importantíssima da igreja local.

Ao terminar, lembremos do teste de amor apresentado pelo nosso glorioso Senhor: “Aquele que tem os Meus mandamentos e os guarda esse é o que Me ama; e aquele que Me ama será amado de Meu Pai, e Eu o amarei, e Me manifestarei a ele … Se alguém Me ama, guardará a Minha palavra, e Meu Pai o amará, e viremos para ele, e faremos nele morada. Quem Me não ama não guardará as Minhas palavras; ora a palavra que ouvistes não é Minha, mas do Pai que Me enviou” (Jo 14:21-24).

Michael Browne

O texto acima é a íntegra do livrete “Autonomia e Autoridade” publicado pela Editora Sã Doutrina.

Notas de Rodapé

[Nota 1] Veja II Tessalonicenses 2:3-10 (N. do T.). [voltar ao texto]

[Nota 2] Por “igreja local”, entenda-se um grupo de cristãos numa localidade que se reúnem regularmente ao nome do Senhor Jesus (N. do T.). [voltar ao texto]

[Nota 3] A palavra grega parousia é usada aqui para se referir à segunda vinda do Senhor Jesus Cristo (N. do T.). [voltar ao texto]

[Nota 4] A referência em Gl 1:22 às “igrejas da Judéia” refere-se, obviamente, a todas as igrejas individuais na região da Judéia, e não a uma confederação ou união de igrejas. [voltar ao texto]

[Nota 5] A tradução literal desta frase de At 20:28 é “no meio do qual…”; a preposição usada no texto grego é en (N. do T.). [voltar ao texto]

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