A Ceia do Senhor

O texto abaixo é a íntegra do livrete de mesmo título publicado pela eSd [esgotado]


Há muitas coisas, nesta vida e neste mundo, que exigem nossa atenção. Para o cristão que vive em comunhão com Deus, porém, sempre será uma prioridade tomar o seu lugar ao redor de uma mesa com um pão e um cálice com vinho, todo primeiro dia da semana, contemplando os símbolos do seu Senhor crucificado, e ouvindo o eco das palavras ditas por Ele na noite em que foi traído: “Fazei isto em memória de Mim”. Nenhuma atividade, secular ou espiritual, irá intrometer-se na vida daquele filho de Deus a tal ponto de levá-lo a esquecer-se daquele compromisso semanal. Para o coração que anda em comunhão com Deus, a Ceia é uma festa sem igual, uma oportunidade ímpar de ocupar-se somente com o Senhor Jesus Cristo, oferecendo sua gratidão, seu louvor, e sua adoração Àquele que é “mais sublime do que os céus” (Hb 7:26), antecipando nossa ocupação eterna.


Nos emblemas sobre a mesa vemos nosso Senhor Jesus (Seu corpo e Seu sangue). Como é necessário pararmos um pouco, pelo menos uma vez por semana, e contemplar Aquele que andou por esta Terra em perfeição divina, que foi chamado Emanuel, Deus conosco! Vemos ali os símbolos da Sua morte (o pão partido, o vinho derramado). Como sentimos nossos corações arderem ao lembrar da Sua agonia no jardim, da zombaria e do desprezo dos judeus, da tortura dos soldados romanos, da vergonha e maldição da cruz. Como nos comovemos ao lembrar da Sua dor, dor sem comparação, com que o Senhor o afligiu “no dia do furor da Sua ira” (Lm 1:12)! Ao tomarmos nossa parte dos emblemas, ouvimos mais uma vez a voz da Sua Palavra: “até que Ele venha”! Lembramos de um Salvador vivo e glorificado, que prometeu nos buscar; e Ele breve vem!

Nesta simples reunião, estes pensamentos solenes e gloriosos ocupam nossas mentes e nossos corações. Separamo-nos dos problemas e aflições da vida, e ocupamo-nos com coisas divinas e eternas. Sentimos o coração transbordar de amor ao lembrar das belezas morais de Emanuel; choramos lágrimas sinceras ao contemplar a dor de Jesus sobre o Calvário; exultamos e glorificamos a Deus porque “a este Jesus … Deus o fez Senhor e Cristo” (At 2:36). Que mais poderia o cristão desejar aqui na terra?

A Ceia é uma reunião preciosa. Na reunião de oração, aproximamo-nos do Senhor para agradecer e pedir. Na reunião de ensino, nosso desejo é receber. Ao evangelizarmos, queremos anunciar aquilo que Ele fez. Durante a Ceia, porém, reunimo-nos para sacrificar. Não estamos ali para pedir as bênçãos do Senhor, nem agradecer pelas já recebidas; não estamos ali para receber ensino, ou proclamar o Evangelho;[Nota 1] estamos ali para lembrar do nosso amado Salvador, e oferecer nossos sacrifícios de louvor. É o que faremos durante toda a eternidade (Ap 5:6-14); quão precioso podermos já experimentar um pouco deste privilégio aqui na Terra!

Que o leitor, enquanto me acompanha na meditação sobre este assunto tão sublime, procure discernir a vontade do Senhor revelada na Sua Palavra. Em todas as coisas, e mais ainda no tocante a esta reunião tão preciosa, é sempre necessário ter o cuidado de descobrir o que Deus quer que seja feito, e obedecer. Que possamos tratar este memorial do Senhor com a devida atenção e respeito.

Afinal, a Ceia é do Senhor!

A instituição da Ceia

O Novo Testamento contém quatro relatos da instituição da Ceia: Mateus 26:26-28; Marcos 14:22-24; Lucas 22:19-20; I Coríntios 11:20-34. Antes de prosseguir neste estudo, seria bom se o leitor tomasse alguns minutos para ler estes poucos versículos. Neles, descobrimos que a Ceia é uma reunião simples, porém extremamente preciosa ao coração daquele que ama nosso Senhor Jesus Cristo.

Uma reunião simples

Apesar do lugar de destaque que a Ceia ocupa nos corações daqueles que amam a Cristo (e com toda razão), é interessante notar que a Palavra de Deus destaca a simplicidade desta celebração. O Novo Testamento fala relativamente pouco acerca duma reunião tão preciosa; não porque a Bíblia desconhece a importância da Ceia, mas para enfatizar que esta reunião só é preciosa devido ao Senhor do qual ela fala.

Afirmamos que a Ceia é uma reunião simples pelos seguintes motivos:
  • Instituída num contexto simples — As quatro narrativas da instituição da Ceia mostram que ela foi instituída de uma forma bem simples, sem qualquer ostentação. O Senhor não preparou um ambiente especial, e nem mesmo preparou, de antemão, seus discípulos, avisando-os de que iria instituir esta reunião. Eles estavam reunidos para outro propósito — não para a instituição da Ceia, mas para a celebração da Páscoa. E no meio daquela festa dos judeus, sem qualquer aviso prévio, o Senhor instituiu a Ceia.
  • Realizada com elementos simples — Ao fazer isto, Ele não utilizou-se de alguma coisa cara e especial, mas de dois elementos simples, que estavam em abundância ali sobre a mesa. Ele tomou, simplesmente, um pão e um cálice. Não eram elementos trazidos especialmente para a ocasião; eram elementos trazidos ali devido à festa da Páscoa, e que Ele aproveitou para instituir a Ceia. Todos os anos havia pães e cálices sobre a mesa na festa da Páscoa. O Senhor usou aquilo que estava ali à Sua disposição.
  • Realizada de forma simples — A cerimônia toda é marcada pela simplicidade. “O Senhor Jesus … tomou o pão; E, tendo dado graças, o partiu e disse: Tomai, comei: isto é o Meu corpo que é partido por vós; fazei isto em memória de Mim. Semelhantemente, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este cálice é o Novo Testamento no Meu sangue; fazei isto, todas as vezes que o beberdes, em memória de Mim.” Só isto! Eu reconheço, é claro, que este ato aparentemente tão simples é repleto de instrução e solenidade. Mas repare este fato: do ponto de vista da liturgia, do ritual, da forma de celebração, a Ceia não poderia ser mais simples!
Faríamos bem se meditássemos nisto. Por que a instituição da Ceia é caracterizada por tanta simplicidade?

O Senhor poderia ter levado Seus discípulos para algum lugar especialmente preparado, avisando-os de que o propósito de sua reunião seria a instituição de algo muito importante. Poderia ter usado elementos atraentes e caros. Poderia ter estabelecido um ritual requintado e atraente. Mas não o fez.

Na Velha Aliança foi assim. As instruções para a construção do Tabernáculo foram dadas no monte Sinai, no meio de vozes, trovões e relâmpagos. A construção foi feita com materiais caros como ouro, e era de uma beleza impressionante.[Nota 2] E não era de qualquer forma que os sacerdotes oficiavam; havia muitos rituais relacionados com a adoração no Tabernáculo.

Mas a instituição da Ceia está em absoluto contraste com todo este ritual do Velho Testamento. No meio da festa da Páscoa, sem qualquer aviso prévio, usando elementos comuns e normais, o Senhor institui uma celebração extremamente simples. Nada de rituais, nada de pompa e glória humana. Apenas uma cerimônia simples.

A razão é clara. A Ceia não é uma reunião para provocar admiração em ninguém devido à beleza de seus rituais e cerimônias. Não foi instituída para atrair, de qualquer forma, a carne (que sempre gosta da pompa dos rituais tradicionalistas). É, pelo contrário, uma reunião que, quando celebrada em sua simplicidade original, impressiona qualquer pessoa espiritual presente, por trazer à memória a pessoa do Senhor Jesus. Ele é o motivo e a razão de ser desta celebração. Ela impressiona quem já pertence a Cristo e O ama, mas não tem nada para agradar ou atrair o incrédulo.

É uma celebração simples, porque a importância está na Pessoa de quem lembramos. O valor não está nos símbolos, mas na Pessoa de quem estes símbolos falam. Um ritual requintado, uma celebração bela e atraente chamariam toda a atenção para si, desviando nossa atenção do Senhor. A simplicidade da Ceia não ofusca, mas destaca a glória do Senhor.

Por este motivo, devemos zelar pela simplicidade desta reunião. Abandoná-la significa desonrar o Senhor. Não podemos permitir que nada e nem ninguém chame para si a atenção durante a Ceia. A reunião deve ser o mais simples possível, para que o Senhor Jesus Cristo seja o único a Se destacar. Devemos nos contentar com a simplicidade estabelecida por Deus.

Uma reunião preciosa

Apesar de extremamente simples, a instituição da Ceia nos lembra que é, também, uma reunião das mais preciosas para o cristão. O homem só sabe valorizar o exterior, mas esta reunião, que não tem nada para atrair a carne, nada para impressionar o ser humano, é preciosa para todo aquele que é salvo, pelos seguintes motivos:
  • “Na noite em que foi traído…” — Os três evangelistas apresentam este fato que o Espírito Santo destaca através de Paulo: a instituição da Ceia foi na noite em que o Senhor foi traído. Sentados ao redor daquela mesa, o Senhor sabia do que iria acontecer naquela noite. Ele podia antecipar a angústia que sofreria dentro de algumas horas; Ele sabia de todo o horror da cruz. E nesta hora tão triste, o Senhor está preocupado não consigo mesmo, mas com Seus discípulos. Pensando naqueles que ficariam desamparados, o Senhor preocupa-se em instituir a Ceia, uma celebração que poderiam fazer em memória dEle. Na noite em que Judas o traiu com um beijo, Ele demonstra Seu amor abnegado, Sua preocupação leal e sincera para com os Seus discípulos. Na noite da qual havia sido profetizado: “Até o meu próprio amigo íntimo, em quem eu tanto confiava, que comia do meu pão, levantou contra mim o seu calcanhar” (Sl 41:9), na noite em que Ele foi traído, Ele estabeleceu um memorial para aqueles que quiserem honrá-Lo e adorá-Lo. A instituição da Ceia, portanto, está relacionada com esta hora tão solene — a noite em que Ele foi traído. Sua preocupação, naquela hora, em deixar esta celebração dá-nos uma indicação de sua importância.
  • “Em memória de Mim” — O principal motivo pelo qual celebramos a Ceia é para lembrar do Senhor. Três vezes lemos estas palavras ditas pelo Senhor: “Em memória de Mim”. Pode haver ocupação mais nobre, mais preciosa, para um cristão do que lembrar do seu Senhor? Lamentavelmente a correria do dia a dia torna-nos tão esquecidos. Durante a semana lembramos do Senhor muito menos do que deveríamos. Quão precioso, então, que podemos celebrar a Ceia todo domingo. Pelo menos durante aquela hora temos o privilégio de ocuparmo-nos somente com o Senhor. Estamos ali, não para aprender nem ensinar; não para pedir nem agradecer por orações respondidas; não para exortar nem consolar; estamos ali somente para lembrar! Lembrar daquele que representa tudo para nós. Quanto mais importante uma pessoa, mais importância terá qualquer coisa feita em memória desta pessoa (uma estátua, um memorial, etc.). Tratando-se do Senhor Jesus Cristo, aquele que é “mais sublime do que os céus” (Hb 7:26), percebemos um pouco da importância de celebrar a Ceia, pois ela é em memória dEle.
  • “Anunciais a morte do Senhor” — Ao celebrar a Ceia, além de lembrar do Senhor, anunciamos a Sua morte. Estamos proclamando, para quem quer que esteja presente, que Cristo foi crucificado para nos salvar. Não estamos ali para pregar o Evangelho, mas as verdades básicas relacionadas à Sua morte serão evidenciadas ao contemplarmos o pão e o cálice, e ao oferecermos nosso sincero louvor a Deus por aquilo que o Senhor Jesus fez. Se temos oportunidade de lembrar do nosso amado Salvador, e ainda estar anunciando a Sua morte, quão preciosa é esta oportunidade! Que saibamos apreciá-la.
  • É um símbolo de comunhão — Há outro fator de importância na Ceia. I Co 10:16-17 e 21 ensina-nos que o pão, além de ser “a comunhão do corpo de Cristo” (v. 16), também fala que somos “um só pão e um só corpo” (v. 17). Ao celebrar a Ceia os membros de uma igreja local estão, em primeiro lugar, falando do seu relacionamento com Cristo, mas também falam do seu relacionamento uns com os outros. Ao participarem todos de um mesmo pão e um mesmo cálice, estão dizendo que fazem parte de um mesmo corpo, que estão em comunhão.
  • “… será culpado …” — Outra indicação da importância da Ceia está no juízo solene pronunciado sobre aqueles que participarem indignamente (I Co 11:27-34). Aos olhos de Deus, participar indignamente (mais detalhes sobre isto depois) torna alguém “culpado do corpo e do sangue do Senhor”. Quem participa indignamente “come e bebe para sua própria condenação”. A Ceia é preciosa aos olhos de Deus, e Ele não permite que alguém participe indignamente sem sofrer as consequências. Não é um acontecimento qualquer, onde qualquer um pode chegar de qualquer forma. É algo precioso para Deus, pois fala da morte do Seu Filho Unigênito, e deveria ser precioso para nós também.
Portanto, que cada leitor já salvo pondere estas coisas. Estamos dando a devida importância à Ceia do Senhor, sem afastarmo-nos da simplicidade que caracterizou sua instituição? Se alguém não puder responder com um sincero “sim” a estas perguntas, minha oração é que Deus, na Sua infinita misericórdia, traga-o de volta ao padrão estabelecido na Sua Palavra.

A celebração da Ceia

Tendo procurado tirar algumas lições das circunstâncias relacionadas à instituição da Ceia, vamos agora examinar algumas perguntas práticas que podem surgir. Para as respostas, confiaremos na Palavra de Deus.

Quando celebrá-la?

Apesar de não haver um mandamento explícito nas Escrituras quanto a isto, podemos estar certos daquilo que Deus quer, baseando-nos no exemplo dos apóstolos e das igrejas mencionadas em Atos.

Em João cap. 20, vemos os discípulos reunidos no primeiro dia da semana (v. 19), e mais uma vez no domingo seguinte, oito dias depois (v. 26). Em At 20:6-11, vemos como Paulo, apesar de ter pressa na sua viagem (20:16), esperou sete dias em Troás (ou Trôade) para poder participar do “partir do pão”, a Ceia. Ele chegou ali na segunda-feira, vindo de Filipos, e esperou até o domingo seguinte, quando então partiu (v. 11). Repare que Paulo não reuniu os discípulos antes do domingo para celebrarem a Ceia, mas esperou até o primeiro dia da semana, atrasando a sua viagem para esperar o dia apropriado.

Estes dois exemplos são ainda mais importantes quando lembramos que o costume de ter o domingo como dia de descanso não era conhecido naqueles dias. Eles não reuniam-se no primeiro dia da semana por ser este o dia em que não trabalhavam. Era no sábado que o judeu descansava. Mas, apesar disto, faziam questão de reunir-se no primeiro dia da semana, o dia que tornou-se tão importante para aqueles primeiros cristãos, o dia em que viram o seu Senhor ressurreto.

Portanto, podemos estar certos de que é no domingo, o primeiro dia da semana, que devemos celebrar a Ceia. O fato de que a maioria dos cristãos hoje não trabalha no domingo é um privilégio que temos, mas não é o motivo de celebramos a Ceia neste dia; devemos seguir o exemplo claro da Palavra de Deus.

Mas alguém perguntará: “Com que frequência devo celebrar a Ceia?” Seria fugir do exemplo bíblico celebrá-la mais do que uma vez por semana; seria sinal de indiferença e ingratidão ao nosso Senhor celebrá-la menos do que uma vez por semana. Se queremos lembrar do Senhor conforme o modelo das Escrituras, celebraremos a Ceia todo domingo.

Onde celebrá-la?

É importante destacar, também, que a Ceia só deve ser celebrada no contexto de uma igreja local. Isto quer dizer que a Ceia é uma reunião que faz parte do testemunho coletivo e regular de uma igreja. Não é algo que pode ser feito por qualquer cristão em qualquer lugar ou ocasião.

Mas a Ceia não foi instituída antes de haver qualquer igreja local? Foi — isto, porém, não prova nada. O Senhor instituiu algo para o futuro. Toda menção da celebração da Ceia no Novo Testamento está relacionada com uma igreja local (as únicas ocorrências são At 2:42, 20:7, I Co 10 e 11). O relato dos evangelistas pertence ao período de transição[Nota 3] entre a velha e a nova aliança, e se interpretado corretamente, não irá contradizer o ensino de Atos e das epístolas.

O exemplo de Atos 20 é ainda mais instrutivo. Jamais lemos de Paulo celebrando a Ceia nas suas viagens, apesar do grupo de homens fieis e piedosos que o acompanhava. Se Atos 20 nos ensina que ele esperou até o primeiro dia da semana, também enfatiza que “os discípulos” reuniram-se para partir o pão (v. 7). Paulo e seus companheiros apenas participaram na reunião semanal da igreja local em Troás. Não quiseram seguir viagem e celebrar a Ceia no navio, longe de qualquer igreja local. Isto teria apressado sua viagem, mas eles preferiram esperar para celebrar a Ceia junto com a igreja.

Quem pode celebrá-la?

O Novo Testamento deixa claro que a Ceia é somente para os salvos. Seria hipocrisia e incoerência um incrédulo lembrar-se de alguém que ele ainda não conhece. Também podemos afirmar que só aqueles que estão dispostos a obedecer o Senhor, que procuram viver vidas santas e piedosas, deveriam participar. Seria hipocrisia e incoerência um cristão rebelde lembrar-se do Senhor que ele não respeita. As exortações de I Co 11 destacam a necessidade de pureza ao lembrar do Senhor na Ceia, mostrando-nos a solenidade desta reunião.

Mas quem é responsável por zelar pela pureza desta reunião? Quem deve decidir se alguém está em condições de participar da Ceia? Será que esta responsabilidade recai sobre os presbíteros da igreja, ou cada participante é individualmente responsável pela sua própria condição?

A Bíblia nos mostra que ambas estas afirmações são verdadeiras. Em termos gerais, há duas situações que tornariam alguém indigno de participar da Ceia: por problemas no seu coração, e por problemas na sua vida. Isto é, por motivos que só a própria pessoa conhece, ou por motivos que são notórios.

Quanto à situação individual de cada pessoa, I Co 11:28 mostra-nos a necessidade de cada um, individualmente, examinar-se a si mesmo. Isto porque alguém pode, externamente, apresentar plenas condições de participar da Ceia, mas seu coração não está preparado. O homem vê somente o exterior, mas o Senhor, que vê o coração, julgará aqueles que não julgarem-se a si mesmos (I Co 11:30-32). Portanto, cada participante tem a responsabilidade, perante Deus, de examinar-se a si mesmo antes de participar do pão e do cálice.[Nota 4]

Mas há problemas que são notórios. Alguém quer participar da Ceia, mas todos sabem (e ele próprio admite) que não é salvo. Outro também quer participar, mas sua vida é uma vergonha para o evangelho. O que fazer em casos como estes? A responsabilidade dos anciãos, que devem vigiar e zelar pelo rebanho (At 20:28-31), é mostrar, com amor e firmeza, que tais pessoas não podem, apesar do seu desejo, participar da Ceia.

Esta verdade fica mais clara se lembramos que o Novo Testamento nunca fala de “recepção à Ceia”. O que temos no Novo Testamento é “recepção à comunhão da igreja”, que inclui a Ceia, mas não se limita a ela. Observe o início da igreja: pessoas eram salvas, batizadas (At 2:41), e perseveravam na doutrina dos apóstolos, na comunhão, no partir do pão e nas orações (At 2:42). Sendo recebidos pela igreja, os novos membros participavam de todas as responsabilidades e privilégios da igreja, não só o partir do pão. Ninguém foi recebido para participar da Ceia sem ser recebido à comunhão da igreja. Por que um irmão, por exemplo, estaria apto a participar da Ceia, mas não para participar audivelmente na reunião de oração?

Se a Ceia é parte integrante do testemunho de uma igreja local, então parece claro que quem tem o direito de participar da Ceia são somente aqueles que estão em comunhão com a igreja, isto é, os membros daquela igreja. Obviamente incluímos neste grupo aqueles irmãos e irmãs que são visitantes, mas que durante o tempo da sua estadia naquele local querem estar em comunhão com aquela igreja.

Mas estão excluídos aqueles que não querem (por motivos pessoais ou doutrinários) estar em comunhão com aquela igreja. Digo isto porque I Co 10 enfatiza o assunto da comunhão. Já tenho citado que a Ceia fala da comunhão que existe entre os membros de uma igreja local. São muitos membros, mas participam do mesmo pão, testemunhando com isto que são “um só pão e um só corpo” (v. 17). Seria, no mínimo, incoerente alguém participar do mesmo pão se não faz parte do mesmo corpo, e se não quer ser associado com aquele “corpo”, aquela igreja. Se a Ceia é uma reunião da igreja, como pode alguém que não é membro desta igreja, que não está disposto a participar de todos os privilégios e responsabilidades na igreja, participar somente desta reunião? Como pode alguém que não está disposto a aceitar aquilo que a igreja pratica sentar-se ao redor da mesa e participar do pão, falando de uma comunhão que não existe?

É verdade que a mesa é do Senhor. Porém na igreja, que também é do Senhor, os presbíteros não podem permitir que qualquer um seja aceito como membro da igreja, ou que um pecador continue no seio da igreja (I Co 5). Os mesmos critérios que usamos para selecionar os membros de uma igreja local aplicam-se aos participantes da Ceia. A pessoa é salva, tem uma vida que condiz com o Evangelho, e está disposta a obedecer o que Deus fala na Sua Palavra sobre a vida diária de uma igreja local? Então devemos recebê-la no Senhor. E um irmão que é membro de uma denominação? Se ele tem o desejo de ser aceito como membro da igreja, estará automaticamente sendo recebido ao partir do pão. Mas se ele prefere ficar na sua denominação, e apenas participar da Ceia, isto não é comunhão. Devemos mostrar-lhe sincero amor cristão, explicando-lhe porque ele deverá apenas observar a Ceia, e não participar dela.

Resumindo: deve ser aceito para a Ceia todo aquele que é aceito na comunhão da igreja, e somente estes, pois o partir do pão é parte integrante do testemunho de uma igreja local, e não uma reunião avulsa e independente. A Ceia é expressão de comunhão; seria incoerente alguém participar da Ceia se não quer incluir-se na comunhão da igreja (em todos os sentidos da palavra), ou se não está apto para tal.

De que forma celebrá-la?

Devemos nos apegar com firmeza ao modelo deixado no Novo Testamento. O ponto chave desta reunião é a participação nos emblemas, como está registrado na Bíblia. Um irmão dá graças a Deus pelo pão, símbolo do corpo do Senhor Jesus Cristo, e este pão então passa de mão em mão, e todos participam dele. Logo em seguida, um irmão agradece pelo cálice, símbolo do sangue do Senhor, e deste também, passando de mão em mão, todos participam.

Após instituir a Ceia, o Senhor disse: “Fazei isto“ (Lc 22:19; I Co 11:24-25), e é isto o que devemos fazer. Não temos autoridade para inverter a ordem estabelecida (o cálice antes do pão), ou para interromper a sequência (um hino entre o pão e o cálice). Devemos fazer como nos foi ordenado fazer.

As Escrituras estabelecem com clareza este “núcleo”, que não pode ser alterado ou pervertido. Quanto ao restante da reunião, porém, convém deixar que o Espírito Santo tenha liberdade para nos guiar. Não podemos estabelecer um programa, pois nada além desta distribuição dos emblemas é estabelecido na Bíblia, mas devemos nos reunir para lembrar do Senhor, confiando no Espírito para nos guiar. Obviamente, Ele faz tudo com decência e ordem, portanto algumas coisas seriam estranhas numa reunião como esta. Estaremos ali para lembrar e adorar, não para pedir, exortar, agradecer ou repreender. O Espírito, também, não levará uma irmã a liderar a igreja, seja em oração, seja na escolha de uma hino, pois Ele próprio já proibiu esta prática (I Co 14:34, etc.).

Portanto, deve haver liberdade para a participação de todos os irmãos em comunhão, através de hinos, orações, e leituras da Palavra de Deus que lembram-nos do Senhor e da Sua obra. Depois de algum tempo em adoração, e de acordo com a liderança do Espírito Santo, obedeceremos ao mandamento do Senhor, participando do pão e do cálice. Em tudo isto, devemos cuidar para que o ritualismo e a forma não tomem o lugar que pertence ao Senhor. Estamos ali para lembrar dEle, e qualquer coisa que possa atrapalhar-nos nesta recordação deve ser tratado com repúdio. Muitas igrejas, bem intencionadas, e querendo mostrar a importância que dão à Ceia, acabam por destruí-la. A beleza dos preparativos, a programação formal (onde alguém é responsável por presidir”” a Ceia, alguém serve os elementos a todos os participantes, etc.), e coisas semelhantes apenas servem para agradar aos olhos humanos, e acabam tirando a nossa atenção daquele que é o centro e a razão da Ceia, o nosso amado Senhor Jesus Cristo.

Devemos observar, em toda a sua simplicidade, o modelo que o próprio Senhor nos deixou.

Cuidados quanto à Ceia

Tenho procurado mostrar que a Ceia é algo de valor inestimável, para nós e para Deus. É uma reunião importante, portanto devemos nos preocupar em como iremos celebrá-la. Satanás fará tudo ao seu alcance para perverter esta hora tão solene, pois ele bem sabe que uma igreja que dá valor à Ceia é uma igreja em comunhão com o Senhor.

Algumas práticas perigosas têm sido notadas ultimamente, e quero alertar os leitores quanto a isto. Este alerta não tem intenção de ser uma crítica ou condenação, mas de procurar, com amor e humildade, destacar a importância de obedecermos ao Senhor até nos mínimos detalhes.

Os Símbolos

Os dois elementos usados pelo Senhor Jesus são figuras do Seu corpo e do Seu sangue. O pão representa o Seu corpo e o cálice representa Seu sangue. Estando separados um do outro, lembram-nos que o Senhor morreu (o sangue separado do corpo).

A primeira vez que a Bíblia fala de pão, este está relacionado com uma maldição. Deus diz a Adão: “No suor do teu rosto comerás o teu pão” (Gn 3:19). A primeira vez que lemos de vinho, está relacionado a uma maldição. O cap. 9 de Gênesis nos diz que Noé bebeu vinho e embriagou-se, trazendo maldição sobre seu filho Cão. Mas a primeira vez que lemos de pão e vinho juntos, o contexto fala de bênção. Melquisedeque, rei de Salém, trouxe pão e vinho, e abençoou Abraão (Gn 14:18).

É importante o destaque que a Bíblia dá ao fato de ser apenas um pão e um cálice. Se fossem vários pedaços de pão, como isto poderia representar o corpo de Cristo? Se fossem dois, ou três, ou muitos cálices, como isto poderia representar o sangue de uma Pessoa, Cristo? Mesmo neste século 20 devemos manter este simbolismo. Alguns dirão que é anti-higiênico, que não é prático (numa igreja grande), mas nada pode substituir este simbolismo. Um pão e um cálice falam do corpo e do sangue do Senhor. Pedaços de pão, ou vários cálices, destroem a figura.

É anti-higiênico? Pelos conceitos da medicina, sem dúvida. Mas o Senhor não sabia disto ao instituir a Ceia? Com certeza, sabia. Irmãos, é preciso obedecer! O Senhor fez desta forma, e instruiu-nos a fazermos isto; não há razões para desobedecer.

É demorado, numa igreja com muitos membros? Por que então esta igreja não se desmembrar em dois ou mais testemunhos naquela cidade? Resolveria o problema, e só traria benefícios.

O centro da questão é como tratamos os mandamentos do Senhor. Ele estabeleceu uma celebração em que era usado um pão e um cálice. Para obedecermos isto, poderemos enfrentar muitos problemas. Mas ao encarar estes problemas, devemos lembrar que desobedecer não é uma opção. Custe o que custar, precisamos ser obedientes ao modelo deixado pelo Senhor.

Este assunto traz à memória o erro de Moisés e Arão (Nm 20:7-13). Deus mandou que falassem à rocha; eles a feriram. Fizeram algo que o Senhor mesmo havia mandado fazer em outra ocasião (Êx 17:5-6), mas desagradaram ao Senhor (“…não crestes em Mim para Me santificardes diante dos filhos de Israel…”). Deus ensinou que era importante fazer o que Ele havia mandado. Em outras circunstâncias, Ele quis que ferissem a rocha. Nesta ocasião, porém, Ele mandou que falassem à rocha, e Ele não aceitaria desobediência.

“Esta rocha é Cristo”, diz o apóstolo (I Co 10:4). Pelo seu erro, Moisés destruiu uma figura. A rocha foi ferida duas vezes para produzir água (Êx 17 e Nm 20); mas Cristo, de quem a rocha é figura, foi ferido uma única vez para produzir as águas da vida. A figura seria bela; Moisés e Arão a destruíram. Que isto nos ensine a obedecer sempre; não sabemos as consequências que nossa desobediência trará.

“Por que me chamais Senhor, Senhor, e não fazeis o que Eu digo?” (Lc 6:46). Amados irmãos, eis uma forma de demonstrar nosso amor e temor pelo Senhor. Ele deu o exemplo; como podemos nos atrever a seguir nosso próprio caminho?

Simplicidade x Ritualismo

Já tenho procurado enfatizar, no decorrer deste livrete, a simplicidade que caracteriza a Ceia do Senhor. Para o espírito daquele que nasceu de novo, esta reunião é a mais preciosa ocupação aqui na terra. Para os olhos humanos, porém, é uma reunião marcada pela simplicidade.

Os motivos para isto já foram enumerados. A Ceia deve ser celebrada com simplicidade para não afastar o coração do salvo da Pessoa bendita de Cristo. Estamos ali para lembrar dEle, e não queremos que nada ou ninguém ocupe nossa atenção, a não ser o Senhor.

É por esta razão, irmãos, que devemos ter medo do ritualismo. Pode ser muito bonito e atraente, mas não é nem bíblico nem espiritual. Quando um homem é colocado como “presidente” ou “dirigente” na Ceia, quando alguém é responsável por oferecer os emblemas a cada um dos membros, quando existe uma programação da qual precisamos estar lembrando, estamos pervertendo a simplicidade associada à Ceia. Estamos presenciando uma reunião mais “bonita”, porém menos espiritual. Estamos enchendo a Ceia de coisas que chamam nossa atenção, e podemos até chegar ao ponto de esquecermos completamente do Senhor.

E convém perguntar: qual a necessidade destas coisas? Absolutamente nenhuma. São desnecessárias, mas o pior é que prendem nossa atenção. Cuidado, irmãos, para que a serpente não nos afaste da simplicidade que há em Cristo (I Co 11:1-3). Ao celebrar a Ceia, lembre-se: uma palavra chave é “simplicidade”.

Condição indigna

Sendo a Ceia uma reunião tão preciosa e tão importante, como devemos nos comportar? O Espírito Santo avisa, em I Co 11, acerca do perigo de participar dos emblemas indignamente.

Participar indignamente é participar sem estar em condições[Nota 5], ou também participar de uma forma indigna, leviana. “Abrange tudo em nossa vida que tenha interrompido a comunhão com o Senhor — pecado em nossa vida pessoal, guardando amargura de espírito contra outro, ou, conforme o v. 29, não discernindo o corpo do Senhor”.[Nota 6] O memorial é solene, e exige uma atitude condizente por parte daqueles que participam dele.

Tendo isto em mente, devemos examinar-nos a nós mesmos com sinceridade e rigor, percebendo a seriedade deste assunto. Existindo algum problema, a solução não é ficar em casa, faltando da reunião. A solução é resolver o problema, e participar. Confessando o pecado, pedindo perdão a quem ofendemos, e assim aproximando-nos do Senhor com a consciência limpa, e participando dos emblemas conscientemente, lembrando dAquele que tanto amamos.

Nossa falha neste aspecto pode trazer graves prejuízos sobre nós (v. 30). Se não nos disciplinarmos a nós mesmos, o Senhor o fará. Participar da Ceia indignamente é tornar-se culpado do corpo e do sangue do Senhor; isto é, o desprezo com que tratamos os emblemas é desprezo para com o Senhor, pois os emblemas são figuras dEle. E Deus julgará, se preciso até com a morte (aqueles que “dormem”, no v. 30, indica pessoas que haviam morrido).

Deus dá muito valor à Ceia, pois ela é em memória do Seu Filho unigênito. Quem participa indignamente, fazendo pouco caso desta celebração, desonra ao Senhor.

Conclusão

No decorrer deste livrete, tenho procurado mostrar que a Ceia é caracterizada por simplicidade na forma, mas é extremamente importante e preciosa. Simples, despojada, sem atrativos ou enfeites externos, sem pompa, sem cerimoniais. Ao mesmo tempo, porém, preciosa, sublime, repleta de instrução e significado para os filhos de Deus.

Já que a Ceia é do Senhor, e não nossa, devemos celebrá-la como Ele deixou revelado na Sua Palavra: todo primeiro dia da semana, reunindo-nos como igreja, em torno de um pão e de um cálice, devemos lembrar dEle até que Ele venha.

Que esta meditação seja útil para aproximar nossos corações do Senhor Jesus, e nossa prática do modelo que Ele mesmo deixou. Que nossos amado Senhor e Salvador Jesus Cristo seja engrandecido e honrado através da obediência de Seu povo, demonstrada no Partir do Pão.

W. J. Watterson

Notas de Rodapé

Nota 1: É verdade que, ao celebrarmos a Ceia, “anunciamos a morte do Senhor” (I Co 11:26). Mas o propósito da Ceia é “em memória” dEle. Ao lembrarmos dEle, obviamente falaremos dEle, estaremos anunciando, mas apenas indiretamente; este não é o motivo da reunião da Ceia.


Nota 2: Para quem estava de fora, o Tabernáculo parecia bastante simples e pouco atraente. Os poucos que tinham o privilégio de entrar pelo véu, porém, podiam ver como era belo e atraente o seu interior. A figura aplica-se à Ceia. Para o incrédulo ou carnal, parece simples, monótono, sem graça. Para o cristão que conhece seu Senhor, porém, é uma preciosidade.


Nota 3: Em relação à Igreja e suas atividades, os Evangelhos preveem, Atos descreve, e as Epístolas prescrevem. Os Evangelhos mostram, de antemão, aquilo que iria acontecer; Atos descreve o que acontecia; as Epístolas falam do que deve ser feito. Temos profecias nos Evangelhos, exemplos em Atos, e mandamentos nas Epístolas. Lembrando-nos destas distinções, poderemos ver uma perfeita harmonia em tudo que o Novo Testamento fala sobre a Ceia e a Igreja em geral.


Nota 4: Convém acrescentar, porém, que este julgamento individual nunca é feito para que o cristão deixe de participar; pelo contrário, é para que aquilo que impede seja removido, e a pessoa tenha, então, liberdade para participar dos emblemas. “Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim coma deste pão e beba deste cálice”. Pecado nunca será desculpa para não participar da Ceia; havendo pecado, este deve ser confessado imediatamente, e assim o cristão poderá lembrar do seu Senhor dignamente.


Nota 5: Obviamente, no sentido prático. Quanto à nossa posição, todo aquele que é nascido de novo (e somente estes) tem o direito de participar da Ceia, pois pertence ao Senhor. Infelizmente, porém, nem sempre vivemos de acordo com nossa posição, e é possível que um verdadeiro filho de Deus, que por natureza tem pleno direito de participar dos emblemas, esteja numa condição indigna por causa de pecado não confessado em sua vida.


Nota 6: J. Hunter no Comentário Ritchie do Novo Testamento, vol 7, pág 180.

3 comentários:

  1. Querido irmão, Obrigado por mais está explicação com base na palavra de Deus feita com clareza e simplicidade sobre este assunto tão solene para nós a ceia do Senhor muito obrigado pois nos ajuda muito e nos edifica cada vez mais nas coisas de Deus. Grande abraço

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    1. Anderson, obrigado pelo incentivo, irmão. Abraços a todos os irmãos na V. Campestre.

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  2. Querido irmão, Obrigado por mais está explicação com base na palavra de Deus feita com clareza e simplicidade sobre este assunto tão solene para nós a ceia do Senhor muito obrigado pois nos ajuda muito e nos edifica cada vez mais nas coisas de Deus. Grande abraço

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